31 de janeiro de 2013

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Tradição X Ética


Uma leitora assídua do Diário do Analisando, comentando o trecho da carta de Jacques-Alain Miller (Lettre ouverte à Monsieur Guaino sur les mariages, Le Point, 29/01/2013) em que ele se refere às tradições, indaga-me se, no fim das contas, devemos  considerar a cultura e a nós próprios como idiotas, uma vez que a tradição é fruto dos valores passados de geração à geração.

Boa pergunta. Mais ainda, essencial.

Naturalmente, quem diz tradição diz transmissão: graças a elas a história e a cultura vão se formando. A questão é quando a tradição impõe-se como regra de conduta, inviabilizando o surgimento de uma nova forma de vida, esta baseada, não no dogma, mas contrariamente, na autorreflexão: que vida eu quero para mim?

Creio que é nesta perspectiva que devemos entender a mensagem de Lacan: "uma tradição é sempre idiota". Quem se apega na tradição como norteador de sua existência, não reflete a si próprio, permanecendo na escuridão e, por que não dizer, na burrice. O próprio da tradição é manter-se - ou fazer o esforço de manter-se - como tal, igual a si mesma, imutável: eis sua imensa vocação ritualística e ao mesmo tempo sua fragilidade reflexiva. Em outras palavras, a tradição é por essência dogmática, repetitiva: sou porque sou e assim me perpetuarei, custe o que custar, sempre a mesma. Ponto final.

A ética não é e não pode nunca ser confundida com tradição: ética não tem ponto final. Ética é criação, isto é, cria-ação individual, um projeto sempre em realização de cada um, absolutamente singular, às avessas de normatizações e hábitos. Contrariamente à tradição que aponta para o dogma e o padrão, a ética aponta para a autorreflexão e a diferença. Tradição é mesmice, ensimesmamento; ética é inovação, alteridade.  

A cada um de nós cabe escolher sobre que base edificar sua existência.


2 comentários:

  1. Gostei da sua explicação para este famoso aforismo de Lacan. O que eu acho é que podemos ter tradições que não norteando a existência. Todos os povos tem rituais, ciclos . e certas tradições fazem parte do ciclo da vida, Existem momentos como Natal e alguns outros feriados em que podemos dar vazão sem culpa ao desejo de estar, conversar com amigos, ou com os filhos , ahh dolce fa niente,, nenhum compromisso a vista e isso é salutar .Mas , nada de ansiedade ou crise se as coisas não são como na casa da bisa. Como você disse, ter um estilo singular e que cada um invente sua reunião, seu feriado. com seu estilo próprio.

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  2. Prezada Graça

    Naturalmente, não se trata aqui de uma tomada de posição sumária contra as tradições. Como dissemos, elas representam os valores da cultura transmitidos de geração à geração os quais estruturam-nos, fazem parte de nossas identificações. Não estou de acordo que façam propriamente parte do ciclo da vida, a menos que, por vida, entendamos "cultura". Até aí, tudo bem.

    Entretanto há de se atentar para o fato de que o próprio da tradição é manter-se - ou fazer o esforço de manter-se - como tal, igual a si mesma, imutável: eis sua imensa força dogmática e ao mesmo tempo sua fragilidade reflexiva. Em outras palavras, a tradição, por essência, é irreflexiva: "sou porque sou e assim deverei permanecer,ponto final" - bem poderíamos ouvi-la dizer.

    Contrariamente à tradição que aponta para o dogma, a ética aponta para a autorreflexão. A cada um de nós cabe escolher sobre que base edificar sua existência.

    Obrigado por nos acompanhar.

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