5 de agosto de 2013

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Só vista. Só vendo. Só eu.



Marcos Chaves, Eu só vendo a vista, 1998
Uma obra do MAR - fabuloso Museu de Arte do Rio - mostra uma vista aérea da Enseada de Botafogo com o Pão de Açúcar ao fundo, e a seguinte frase em destaque sobre o céu azul:

EU SÓ VENDO A VISTA 

Achei graça de alguém vender a vista, e mais ainda, de a vista estar à venda, em se tratando nada menos do que um dos mais belos cartões postais do mundo. Fiquei pensativo: que outras coisas poderiam estar à venda e não estão? De súbito, senti uma pequena vacilação na apreensão do sentido do enunciado:

Só a vista está à venda?

Só eu faço a venda da vista?

Só eu vendo em dinheiro?

Venda da vista é só o que eu faço?

Só faço a venda se for em dinheiro?

Vejo a vista sozinho?

Não faço outra coisa senão ver a vista?

Eu só vendo a aparência?

Eu só cubro os olhos?

Só se eu vir a vista?

Só se eu vir o pagamento em dinheiro?

Eu só tapo a vista?

Só vejo o olhar?

...

A qual desses sentidos remete o enunciado da obra? Qual deles é o verdadeiro? Essa questão enseja a gente pensar numa tripla imbricação entre linguagem, arte e psicanálise. E claro, a questão da verdade costurando as três. 

A linguagem supõe que uma palavra tenha aproximadamente o mesmo sentido para todos para os falantes de uma mesma língua: este acordo é condição sine qua non para a comunicação. Dito isso, nada determina o sentido de uma palavra: a significação é sempre instável e incerta, como demonstra a minha vacilação em relação ao sentido de: EU SÓ VENDO A VISTA. Isso porque somente dentro e através do contexto é que a significação adquire uma certa consistência. Insisto: uma certa consistência. Para a psicanálise, o significante não é unívoco, mas equívoco, depende do contexto, das ocorrências onde é empregado. Quando se desloca uma palavra ou uma frase de seu contexto original, o sentido se desloca. É o que faz a arte: ao mover os significantes EU SÓ VENDO A VISTA para a Enseada de Botafogo e o Pão de Açúcar, o artista cria um contexto o qual produz um significado diferente. É o que Lacan chama de efeito metafórico. 

A exemplo do artista, o psicanalista também desloca os significantes: em vez de tentar compreender o que diz o analisando, ele o incentiva a dizer o contexto, isto é, abre caminho a outros significantes. Para quê? Para provocar no analisando uma palavra diferente, um sentido novo. Mesmo quando o analisando diz algo que parece óbvio, para o psicanalista, os significantes nunca são suficientes para uma compreensão. Nunca. Numa análise, trata-se de ir além das convenções da linguagem e supor que a mesma palavra signifique algo singularmente para um sujeito e não para outro. É o que faz com que o psicanalista não busque compreender, mas sim fazer com que o analisando produza texto e contexto. Fazer análise é isto: produzir texto, e sobretudo, contexto. É aí que o sujeito ouve um significado novo do que ele diz, descobre que ele diz algo que não pensara ter dito. 

Donde a importância fundamental para a psicanálise da pontuação. O trabalho do analista é tal qual o de um editor: o analisando chega com um texto e sai com outro. Mas o analista não escreve o texto: ele tira uma vírgula, põe um ponto, reforça uma palavra, corta. Essa pontuação, que pode culminar com a suspensão da sessão - o corte - tem como finalidade instaurar um vazio de significação e provocar no analisando uma nova interpretação. Cabe sempre a ele, e tão somente a ele, interpretar a questão: o que isso quer dizer? Da mesma forma que cabe sempre a cada um de nós, e tão somente a cada um, interpretar o sentido de EU SÓ VENDO A VISTA. 

Eis porque linguagem, arte e psicanálise não são questão de exatidão, e sim de interpretação. A interpretação nunca é definitiva: o sentido permanece sempre aberto. A verdade, diz Lacan, tem estrutura de ficção”. 

É só vista. 
Só vendo. 
Só eu.

6 comentários:

  1. Tropeçamos na linguagem ou na realidade? Parece que o contexto é mais real do que a própria realidade. O contexto é realidade e momento.É estar no seu tempo. Belo texto!
    Talita Ramos

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    1. Realidade? Que realidade?
      O fantasma, diz Lacan, é a janela para o mundo.
      E o contexto, fantasmagoria pura.
      Com efeito de verdade, é claro!

      Obrigado por acompanhar o Diário.

      Claudio Pfeil

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  2. Meu Amigo querido,

    Seu texto SÓ VISTA. SÓ VENDO. SÓ EU., acho que sem qualquer tipo de salamaleque, está dando trabalho para minhas antenas, já não tão rápidas e precisas quanto já foram; é rápido, veloz, muito rico em imagens e maneiras de ver e sentir a foto, magnífica como fidelidade ao
    real; e rápida, veloz e rica é sua série de comentários sobre a frase inscrita sobre ela, a foto. Preciso degustá-los (o texto, as suas interpretações)
    como se degusta um bom vinho, um bom filme ou um bom livro, e eu sem apelar, já caminho rápido para os 81, gostaria que fosse para os 18... "mais...c´est la vie..." Para mim até agora continuo vendo, do verbo ver, a magnética vista e se a tivesse não a venderia por NADA!!!!!!!!!!
    Abraços e beijos.
    E vou procurar onde me encaixo nesse belo texto.
    Merci de antemão.
    Rosa

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  3. Quanto aos seus textos, às vezes preciso ler mais de uma vez, ou duas,são excelentes, chapeau! Bjs, Rosa.

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  4. Se "a linguagem supõe que uma palavra tenha aproximadamente o mesmo sentido para todos os falantes", e que isso é condição para a existência da comunicação, a primeira conclusão que tiramos ao ler este texto é: comunicação não existe, o que existe é um grande mal entendido..., mas isso é muito bom, afinal é o que viabiliza a singularidade, esta preciosidade que nos faz únicos e que nos possibilita tantas criações, tantas trocas.
    A criação vem do equívoco, de um questionamento. Como criar na compreensão? Esta supõe o encaixe de um dito a outro já existente, nada muda, apenas reforça o entendimento, continuamos na mesma...
    Claudio, através do seu texto, nos apresenta os vários equívocos da linguagem, e nos instiga. Sim, temos que ler e reler, voltar, repetir, e nesse movimento vamos abrindo possibilidades para o novo.
    Eis a proposta da psicanálise, eis a proposta do nosso amigo. Belo equívoco, Claudio!

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  5. Bem dúbio. Te coloca a pensar por mais de uma vertente..Gosto disso!

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