15 de abril de 2014

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O doublé de Isabelle




No bate-papo com Isabelle Huppert, ontem à noite no Cinemaison, no Rio de Janeiro, fiz-lhe uma pergunta, em verdade, duas: se dentre tantos papéis interpretados por ela, haveria um pelo qual ela tivesse uma afeição especial, e se, justamente, em virtude de tantos papéis já interpretados - o que, imagino eu, faz com que a exigência na escolha de um novo papel seja cada vez maior - haveria um papel que ela gostaria, ou sonharia, que lhe propusessem. 
Isabelle Huppert, fina, afável, sem se fazer de estrela, sorriu com os lábios batom rouge sangue, sem no entanto - ela é francesa, certo? - mostrar os dentes. 
- Je suis désolée, mais je dois répondre "non" à vos deux questions. 
Isso mesmo, non e non. Claro, a plateia riu. 
O primeiro “non” justificou assim: um papel para ela só tem importância enquanto o está fazendo, uma vez terminado, passou, não lhe pertence mais, e sim ao espectador. Não se tem a mesma relação com um papel conforme se é atriz ou espectadora, arrematou.
O segundo “non” veio seguido assim: ela não espera um papel, e sim um encontro, ou melhor, encontros. Deles, muitas vezes nada acontece, outras, nasce algo novo, inesperado, causador de um interesse particular, uma estranheza, um desejo. A partir daí, construir algo, quem sabe? 
O duplo não de Huppert me soou no fundo como um doublé de sim. 
O mesmo sim que a gente sub-repticiamente deposita no analista e em nós mesmos cada vez que se deita no divã, e que pode ser expresso mais ou menos assim: é somente através de um desgarramento em relação ao já feito, sabido, acabado, aos papéis que interpretamos no passado e aos quais nos agarramos em cenas repetidas no presente, que podemos dar-nos a chance de nos recriarmos por nós próprios. Trata-se de uma espécie de aposta totalmente incerta no desconhecido, mas que de tão visceralmente certa de desejo, traz consigo a promessa de que novos roteiros de vida venham vicejar. 
Desgarrar-se dos papéis para reescrever, no esvaziamento das identidades que nos constituem, nossa própria estória: eis o doublé de Isabelle, nem Dama das Camélias, nem Professora de piano, nem Madame Bovary, nem mesmo a própria Maud, a quem fomos apresentados durante a exibição de "Uma relação delicada" (Un abus de faiblesse), na estreia chuvosa do Festival de Cinema Francês no Rio.


Um comentário:

  1. Acho que é exatamente isso o que a Vida faz conosco, nos dá papeis que assumimos e liberamos, descartamos e seguimos em frente
    a encarar novas situações ( e a Vida gosta de aprontar e ficar na coxia observando nosso desempenho...) pois então "que venga el toro!", e às vezes é um Miura! Fazer o que? Faz parte do jogo que jogamos com Ela desde o nosso primeiro respirar neste velho mundo...
    Bjs Rosa. Sucesso, meu querido!

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