4 de fevereiro de 2016

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A puta e o homem que não é homem



Lembrei-me de um episódio. Era Carnaval: a multidão alegre, barulhenta, espremia-se de suor nas ruas, em plena luz do dia, fechando o trânsito. Um casal dentro de um carro atolado na massa humana – ele ao volante, ela ao lado – quis abrir passagem a todo custo: pé no acelerador, buzina, gestos nervosos por detrás do vidro fechado. Não saíam do lugar, muito pelo contrário: o carro parecia comprimir-se sob o embalo de corpos colados à sua lataria, alguns deitados no capô como num sofá. A moça, enfurecida, resolveu tomar uma atitude. Não sei como, conseguiu abrir a porta, saiu do carro. Se eu pudesse tê-la aconselhado, teria lhe dito que jamais fizesse o que fez: dedo apontado sabe Deus para quem, cara feia contra tudo e todos, despejava sua ira sobre a multidão, a qual, mais acesa do que nunca, retribuiu-lhe em coro, batendo as mãos no carro:

– Pi-ra-nha! Pi-ra-nha! Pi-ra-nha!

Não se mexe com Momo: carnaval é festa profana. A moça ficou ainda mais transtornada, fora de si, mas seu instinto de sobrevivência pareceu falar mais alto. Imediatamente enfiou-se no carro. Mas sua ira, continuava a despejar para o lado de fora, sempre com os vidros levantados: ela é irada, mas não é boba. Quanto mais ela se agitava e vociferava dentro – como num filme mudo – mais a multidão se eletrizava e multiplicava a chacota do lado de fora – risos, trejeitos, vaias, gargalhadas – fazendo do teto do carro um verdadeiro tamborim. Foi quando a moça resolveu abaixar apenas alguns centímetros do vidro para insultar mais diretamente a multidão. Coitada, o carro quase foi virado do avesso. E um segundo coro entoou em uníssono, no ritmo do tam tam tam na capota:

– Mal co-mi-da! Mal co-mi-da! Mal co-mi-da!

Dessa vez o tiro não pegou só nela, mas também no coitado do motorista que até então, consciente da ameaça que lhe pesava sobre a cabeça – as duas mãos ao volante como que agarrado a uma boia de salvação – adotara a mais prudente das atitudes: calma e silêncio. Se ela é piranha, o problema é dela, mas se é mal comida, a culpa é dele, quem mandou não ser homem suficiente? Castração, meu caro, a eterna ameaça...  

A multidão pode até não ter lido Freud, mas deu prova de que sabe, na mais justa das intuições, como depreciar uma mulher e um homem. 
A puta e o homem que não é homem.

A voz do povo é a voz de Freud.

Psicanálise no carnaval.

Claudio Pfeil

Diário De Analisando Paris 
 

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