23 de setembro de 2016

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Monstruoso eufemismo

O Globo, 23/09/2016
Hoje cedo, deparei-me com duas manchetes de jornal - O Globo, EXTRA - acerca da reforma (nem ouso chamá-la educacional) proposta pelo governo. Ambas ressaltam em letras garrafais o aumento da carga diária de aula para 7 horas. Um leitor desavisado poderia até achar que se trata de um avanço. Mas não. As duas manchetes são, em verdade, insidiosas.

O cerne dessa "reforma", o que está REALMENTE EM QUESTÃO - nada mais nada menos - é uma clivagem, clivagem entre DOIS TIPOS de disciplinas: as que o governo julga ESSENCIAIS, e as que julga SUPÉRFLUAS. Como o governo não tem coragem de assumir, com as mesmas letras garrafais da manchete, sua lógica de pensar – afinal, dizer que arte, educação física, filosofia e sociologia são supérfluos, é o mesmo que mandar Picasso, Bolt, Sartre, Marx, Durkheim, Auguste-Comte, Weber e outros, para as cucuias - escolheu-se um nome que sugere autonomia, livre-arbítrio, liberdade de escolha. Tais disciplinas sãos consideradas a partir de então “optativas”. Louvas à liberdade de escol(h)a! Bonito, não?

Trata-se na verdade de um monstruoso eufemismo, acobertado pelo carro-chefe de se aumentar o tempo de aula. Qualquer pessoa mais ou menos sensata é a favor do tempo integral, também sou. Falo por experiência própria: cursei quase todo o primeiro e segundo graus – hoje, chamados respectivamente, ensino fundamental e médio - em horário integral. Todavia, a proposta alardada pelas manchetes de jornal é insidiosa. A questão não é meramente QUANTITATIVA, mas essencialmente QUALITATIVA. Portanto, antes de qualquer projeto de reforma educacional, há que se promover um amplo debate nacional, notadamente com a participação de pensadores e educadores de todas as áreas, para se discutir o que, a meu ver, é a GRANDE QUESTÃO: o que é educação, e a partir daí, que modelo educacional queremos para o País? Não é uma canetada governamental aumentando o tempo escolar que vai fazer do Brasil uma pátria verdadeiramente educadora.

Não nos deixemos enganar. Ninguém é tão tolo a ponto de achar que no estádio geral e atual da nossa sociedade, alguma escola, num lampejo iluminista, fará a benesse – pois se tratará disso - de propor aos educandos aquilo que a lei estipula como supérfluo, perdão, “opcional”. É a lei, ponto final. Mutatis mutandis, é como cachê artístico: se for “opcional” - como algumas casas de espetáculo estipulam para poderem faturar mais nos comes e bebes – muita gente, até mesmo os que se agradam do show, não vêm motivo nenhum em pagar, afinal de contas, a opção é de cada um. E mais: acham que estão fazendo um favor de estarem ali, assistindo ao show, e vão-se embora felizes da vida, na maior paz, cantarolando o que acabaram de ouvir. O artista que se dane. Quem é cantor ou músico sabe disso. Ele que vá fazer algo realmente necessário para ganhar a vida. Arte é mesmo supérfluo, não é mesmo?

Digo e repito. Tornar essas disciplinas "optativas" é um monstruoso eufemismo, o mesmo que dizimá-las da rotina estudantil. E o que é pior: sob a alcunha cínica da “liberdade de escol(h)a”. Em suma, essa “reforma” nada mais é do que uma formatação, uma colocação do espírito humano numa forma pré-definida, mediante uma lógica de funcionamento exclusiva, fruto da visão tecnicista do mundo, da própria vida. 

Claudio Pfeil 
  
EXTRA, 23/09/2016


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