No
bate-papo com Isabelle Huppert, ontem à noite no Cinemaison, no Rio de
Janeiro, fiz-lhe uma pergunta, em verdade, duas: se dentre tantos papéis
interpretados por ela, haveria um pelo qual ela tivesse uma afeição especial, e
se, justamente, em virtude de tantos papéis já interpretados - o que, imagino
eu, faz com que a exigência na escolha de um novo papel seja cada vez maior -
haveria um papel que ela gostaria, ou sonharia, que lhe propusessem.
Isabelle
Huppert, fina, afável, sem se fazer de estrela, sorriu com os lábios batom rouge
sangue, sem no entanto - ela é francesa, certo? - mostrar os dentes.
- Je suis désolée, mais
je dois répondre "non" à vos deux questions.
Isso
mesmo, non e non. Claro, a plateia riu.
O
primeiro “non” justificou assim: um papel para ela só tem importância enquanto
o está fazendo, uma vez terminado, passou, não lhe pertence mais, e sim ao
espectador. Não se tem a mesma relação com um papel conforme se é atriz ou
espectadora, arrematou.
O
segundo “non” veio seguido assim: ela não espera um papel, e sim um encontro,
ou melhor, encontros. Deles, muitas vezes nada acontece, outras, nasce algo
novo, inesperado, causador de um interesse particular, uma estranheza, um
desejo. A partir daí, construir algo, quem sabe?
O
duplo não de Huppert me soou no fundo como um doublé de sim.
O
mesmo sim que a gente sub-repticiamente deposita no analista e em nós mesmos
cada vez que se deita no divã, e que pode ser expresso mais ou menos assim: é
somente através de um desgarramento em relação ao já feito, sabido, acabado,
aos papéis que interpretamos no passado e aos quais nos agarramos em cenas
repetidas no presente, que podemos dar-nos a chance de nos recriarmos por nós
próprios. Trata-se de uma espécie de aposta totalmente incerta no desconhecido,
mas que de tão visceralmente certa de desejo, traz consigo a promessa de que
novos roteiros de vida venham vicejar.
Desgarrar-se
dos papéis para reescrever, no esvaziamento das identidades que nos constituem,
nossa própria estória: eis o doublé de Isabelle, nem Dama das
Camélias, nem Professora de piano, nem Madame Bovary, nem
mesmo a própria Maud, a quem fomos apresentados durante a exibição de "Uma relação delicada" (Un abus de faiblesse), na estreia chuvosa do
Festival de Cinema Francês no Rio.