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Edmund Husserl (1859-1938), fundador da Fenomenologia |
Um leitor do
capítulo que publiquei sobre a ética em Sartre* me indagou: o que significa
exatamente dizer que a consciência é constituinte?
Caro Eduardo,
Aqui vai minha
resposta a sua pergunta. Procurei ser o mais sucinto possível, inspirado no
frescor dessa manhã de domingo. Assim espero ter logrado.
Constituição,
para a fenomenologia, significa duas coisas essenciais. Primeiramente que a
significação (ou se preferir, sentido dos objetos) é um ato da consciência. Em segundo,
que a própria noção de objeto (etimologicamente, "o que está à
frente") tem como correlato uma consciência que o coloca como um "ser
aí". Portanto constituir significa "colocar como sendo
aí". Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, traduziu isso numa fórmula: "toda
consciência é consciência de" (algo, este algo sendo qualquer coisa:
um objeto material, imaginário, relembrado, idealizado, antecipado, afetivo,
matemático etc). É o que ele chama de intencionalidade da consciência (não
tem nada a ver com intenção no sentido de vontade, mas isso vou deixar para lá)
. O que importa agora é isto: a fenomenologia consiste precisamente em
descrever os atos da consciência, atos constituintes, intencionalidade - são sinônimos. Está bem
até aqui?
Pois bem. O conceito
de intencionalidade designa a consciência de uma maneira totalmente nova. A
psicologia por exemplo (Sartre faz uma crítica em Esboço para uma teoria
das emoções), descreve a consciência como se ela fosse um depósito escuro
(a "mente") dentro do qual se alojariam vários objetos (impressões,
sensações, lembranças, emoções etc) e ali permaneceriam guardados. Desse modo,
a atividade de consciência seria comparável a de uma lanterna que, direcionada
a esses conteúdos lá dentro, seria capaz de iluminá-los.
Aí vem a total
novidade, originalidade, de Husserl, um de meus grandes mestres e de quem
Sartre se faz herdeiro em suas bases. Para a fenomenologia justamente, a
consciência não é um depósito: não não há nada dentro, ou melhor, ela não tem dentro, nem fora. Isso porque não se pode separar a
consciência de seus objetos, ela nada é sem eles, pelo contrário, ela se revela
com e através deles. Não há de um lado a consciência, e de outro, o
objeto da consciência: a consciência é desde sempre uma totalidade, ela é o
todo da realidade, só há consciência como consciência de. Isso não significa
que a consciência cria o mundo (a consciência de mesa não cria materialmente a
mesa) mas sim, que a consciência constitui o sentido de mundo (ou, se preferir,
o sentido de mundo é o que a fenomenologia chama de consciência). A
fenomenologia é, portanto, a revelação da consciência como constituinte de todo
valor, ação, pensamento, sentido.
Isso é apenas para
dar o gostinho. Tem muito, muito, muito mais por vir: a fenomenologia é
infinita.
"Pelo fato de
conceber ideias, o homem se torna um homem novo, que, vivendo na finitude, se
orienta para o polo do infinito." Palavra de Husserl.
Grato pela
oportunidade de interlocução.
Claudio Pfeil
*CLAUDIO PFEIL,
"A moral em Sartre: uma porta para o impossível?", in SARTRE E SEUS
CONTEMPORÂNEOS, Ética, Racionalidade e Imaginário, Ed. Ideias & Letras