31 de janeiro de 2013

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O antes e depois de Pontalis


Num belo opúsculo intitulado "Antes" (Avant), publicado em 2012, Jean Pontalis escreve: "C'était mieux avant".

Melhor antes? Antes quando?

"Quando a palavra revolução era portadora de esperança", "quando Lacan ainda não tinha fabricado os lacanianos",
"quando Sartre não era famoso",
ou ainda "quando eu ia dançar no Baile negro, na rue Blomet".

Esse é o estilo Pontalis.
Grande estilo.
Antes, de Pontalis.
Haverá um antes e depois de Pontalis.
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Tradição X Ética


Uma leitora assídua do Diário do Analisando, comentando o trecho da carta de Jacques-Alain Miller (Lettre ouverte à Monsieur Guaino sur les mariages, Le Point, 29/01/2013) em que ele se refere às tradições, indaga-me se, no fim das contas, devemos  considerar a cultura e a nós próprios como idiotas, uma vez que a tradição é fruto dos valores passados de geração à geração.

Boa pergunta. Mais ainda, essencial.

Naturalmente, quem diz tradição diz transmissão: graças a elas a história e a cultura vão se formando. A questão é quando a tradição impõe-se como regra de conduta, inviabilizando o surgimento de uma nova forma de vida, esta baseada, não no dogma, mas contrariamente, na autorreflexão: que vida eu quero para mim?

Creio que é nesta perspectiva que devemos entender a mensagem de Lacan: "uma tradição é sempre idiota". Quem se apega na tradição como norteador de sua existência, não reflete a si próprio, permanecendo na escuridão e, por que não dizer, na burrice. O próprio da tradição é manter-se - ou fazer o esforço de manter-se - como tal, igual a si mesma, imutável: eis sua imensa vocação ritualística e ao mesmo tempo sua fragilidade reflexiva. Em outras palavras, a tradição é por essência dogmática, repetitiva: sou porque sou e assim me perpetuarei, custe o que custar, sempre a mesma. Ponto final.

A ética não é e não pode nunca ser confundida com tradição: ética não tem ponto final. Ética é criação, isto é, cria-ação individual, um projeto sempre em realização de cada um, absolutamente singular, às avessas de normatizações e hábitos. Contrariamente à tradição que aponta para o dogma e o padrão, a ética aponta para a autorreflexão e a diferença. Tradição é mesmice, ensimesmamento; ética é inovação, alteridade.  

A cada um de nós cabe escolher sobre que base edificar sua existência.


24 de janeiro de 2013

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Paris mon Amour


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M-in-dizível

Água de coco
Coqueiro d'água

Dentro fora
Fora dentro

Como o Ser
e a palavra

Sou nela
Fora dela
Sem ela  
o que sou?
Nada
Com ela
me estranho
a ponto de não ser

A palavra diz
Eu
vocação in-dizível
de mim
espelho in-visível
de mim

23 de janeiro de 2013

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Mim folhas



Passo pedalando
Traiteurs de France
Portas fechadas

Só o letreiro

Mil vezes passarei por lá
Mil vezes
Mil folhas

Mil palavras
Mil letras
Desfolhar de mim

Mim folhas

A voz da moça do balcão
Chamando ao longe
Passa depois
tem um mil folhas separado para você

Portas fechadas
Só o letreiro

Mil folhas se vão
A palavra fica


Mim
Folhas

20 de janeiro de 2013

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Adieu Traiteurs



O primeiro choque foi quando a Confeitaria Colombo de Copacabana fechou as portas. Um dia, ao ver operários furando o mármore do chão para instalar portas de vidro da agência bancária que tomaria seu lugar, senti furar meu coração. Vez ou outra ao passar em frente, lembro do piano tocando no andar de cima. Diziam que a Colombo não era mais a mesma, que estava em decadência, hora mesmo de acabar, essas coisas ventiladas com aparência de ares progressistas. A mim isso não importa. As coisas nunca são as mesmas e nem por isso perdem sua razão de existir. A Colombo tinha uma: um piano tocando ao tilintar de xícaras de chá a alguns passos do tumulto e do trânsito. Bastava subir os degraus da elegante escadaria com passadeira vermelha e sentir que um mínimo de encantamento é necessário à vida.

O segundo foi com o Restaurante Giotto na Praia de Botafogo. Do ônibus em alta velocidade, vi tapumes encobrindo a vitrine. Desci voando, corri até lá, meti o olho na fresta: o Giotto dos móveis antigos, dos lambris envernizados, das garrafas de vinho enfileiradas nas prateleiras ao redor, dos garçons de terno branco encardido e do primeiro fetutine parisiense de minha vida, era só escombros. Até a placa art déco logo acima da porta de entrada - G I O T T O (em letras douradas e fundo preto) - já tinha sido arrancada. O porteiro do prédio, solidário à minha desolação, me informou: puseram umas madeiras hoje lá no lixo. Fui ver. Remexi na montanha de entulho, catei a placa empoeirada e fui embora com ela debaixo do braço. Pendurei-a no alto da parede da minha sala. De vez em quando um curioso ao vê-la ao lado do retrato de meus bisavós, indaga: é seu nome de família? Brinco comigo mesmo: Giotto sou eu quando eu era muito gi-ovan-otto.

Tempos depois, de acordo com o provérbio “não há dois sem três”, sobreveio o terceiro choque: o restaurante Pronto, no baixo Leblon. Pedalando, avistei de longe a varanda vazia, grades baixadas, tudo apagado, tomei um susto. Nunca vi o Pronto fechado, sempre aberto a fazer par com a madrugada. Por motivo de reforma? Um luto talvez? Nada: fechado definitivamente. Domingo à noite, o melhor dos programas: rodízio de pizza na ampla varanda debruçada sobre a Dias Ferreira. Assim foi durante anos. O pizzaiolo, bonachão de bigode farto, ao me ver entrar, sinalizava através do vidro da cozinha se ainda havia rúcula: "sim" ou "não" eram garantia das melhores pizzas que já experimentei. Os garções, conhecia todos pelo nome. Everton, nordestino discretíssimo e eficiente como um mordomo de filme, era tido como meu favorito pelos demais. Acontece que sabia de cor a ordem de pizza de minha preferência e, de “entrada”, trazia uma travessa de penne ao manjericão por conta da casa. Favorito, será? Gilberto, o mais antigo, tão antigo que se arrastava arqueado pelo salão parecendo babar sobre a bandeja, ao passar pela mesa, aceitasse eu ou não, despejava dois pedaços de uma só vez dizendo: come! E eu comia, feliz da vida, exultando, exclamando, incorporando o que vinha escrito nas toalhas de papel: se siete soddisfatti ditelo agli amici, si no ditelo a noi

Quisera eu numa fantasia que esse suceder de choques se limitasse à trilogia Colombo-Giotto-Pronto. Mas onde há desejo há resistência e o próprio do mundo é resistir. E dessa vez a colisão foi das mais fortes: o Traiteurs de France que funciona há 24 anos em Copacabana fechará suas portas neste domingo, 20 de janeiro. Confesso: estou consternado. Passo lá de bicicleta quase todo dia, às vezes, só por passar, sentir o charme decadente meio vieille France, ver senhoras penteadas tomando café com madeleines, a coluna Morris pintada de vermelho, as baguettes fresquinhas arrumadas no cesto, os pães de passas e nozes, de gergelim, os brioches, os croissants, os folheados, as tortas, os Opéra, os mil folhas, os macarons, e nesse início de ano, as galettes des Rois, feitas à moda antiga: tudo é delicioso. Ontem fui ter com um dos sócios, Patrick, um pâtissier sessentão que trabalhou dez anos no Méridien. Indaguei-lhe: comment ça se fait que vous allez fermez les portes? Em resposta, o resumo de um quiprocó danado: infiltrações no teto, obras intermináveis sem solução, o condomínio do prédio diz que não tem nada com isso, o proprietário também não, um chutando a bola para o outro, batalha judicial sem fim, alta astronômica do aluguel, do stress também, e para culminar, um piripaque no coração do traiteur: je n’ai plus de force ni d’argent pour continuer, c’est fini, fini! - arrematou com voz embargada.

Dizer o quê diante desse irremediável c’est fini ? Que estou muito triste. Que o Traiteurs de France poderia até morrer mas nunca fechar as portas. Que os jantares chez Apoteose não serão os mesmos sem aqueles pães. Que o mil folhas me faz sonhar. Que a galette des Rois é mesmo um presente dos reis. E que amanhã eu passo mais uma vez por lá nem que seja para dizer: Adieu.