29 de dezembro de 2015

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Ca-cafon(i)a de estação





Gosto é gosto
Mas acho cafona reclamar
Do calor no verão 


Soa mal
Cacofonia 


Perdão 
Acho um despautério
Desrespeito até

Quem reclama do calor
Acha que suor é todo seu
Fora de estação 


Sua mal
Ca-cafon(i)a


Moda verão é quente
Moda inverno é fria
Moda queixa é gozo
Moda de cada um


Gozo é gozo
Mas acho cafona reclamar
Seja qual for a estação


Tá calor?
Liga o ar, ventilador
Chupa gelo, picolé
Banho de mar, açaí
Véu de noiva
Vale da lua


Não funciona?
Vai pra Sibéria
Geleira perene
Amor na lareira 


Eu, hein? Tá me zoando?
Lá faz um frio...
 


Faz, faz mesmo
De novo, perdão:
E o diabo que te carregue
Com tua queixa ao divã?

22 de dezembro de 2015

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Só sei que chorei



Chorei
Só sei que chorei


Pela língua
Que me faz ver o mundo
E ouvir o silêncio
Quando me deito
Em horas de avesso


Língua dos meus olhos
Língua que me fala ao ouvido
Língua que me beija
Língua que diz
Eu te amo


Amo-te lingua
Amo-te!
Como mortal
Ama a vida
E chora toda morte


Gosto de sentir-te inteira
Sorver-te leitosa
Sorvete gostoso
De língua abusada


Gosto-te
Sem vergonha!


Teus volteios
Molejos
Riachos
Chiados
Cachopas
Em cachos
Nos tachos
De chuva
Teus machos
Fogachos
Teu facho
Meu sol


Gozo-me de luso
Lambuzo-me de fala
Penetro teus vazios
Intento prazeres
Invento saberes
Faço diachos de ti
Que nem mesmo eu sei!


E de que serve saber
Quando a língua dá gosto ao que se vive?


Aliás confesso-te
Das palavras tuas
Gostoso é das
Que mais gosto
Em minha lingua
Enroscada na tua
Gostosa onda
Em minha boca
De tua língua
Lincensiosamente nua


Lingua tua
Minha nossa
Senhora das letras
E sons que se beijam
Ventos gemidos
Nos lábios da madrugada
Fazendo
inho
ninho
morninho


Gostoso beijo de lingua
Que hoje choro nos meus olhos
Como mares atravessados
Que trouxeram-te até a mim


Língua que toca o ouvido
Teso de língua gozada
A derr-amar-se inteira em ti
E contigo deleitar-me todo


Ouça-me amada
Ouça-me


Se beijar-te é abandonar-me ao desejo
O que é beijar-te quando ainda mais
posso ser teu verbo?


Chorei
Só sei que chorei 


Do choro de todos os teus poetas
De tua mais velha infância
De galopes lembranças
Na cacunda do fogo
Choro de língua
De verbo e saudade


Chorei
Só sei que chorei


Claudio Pfeil

21 de dezembro de 2015

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O "x" do lixo do Amanhã e de hoje


A foto postada no Diário "viralizou", como se diz, ganhou as redes sociais, virou matéria de rádio, TV.

Duas toneladas de lixo recolhidas no dia seguinte à inauguração do Museu do Amanhã, Praça Mauá, Rio de Janeiro. DUAS TONELADAS. "Lixo foi maior que esperado", diz a matéria: "O presidente da Comlurb afirmou que o local recebeu muito mais público do que o estimado e, por isso, a estrutura não foi suficiente para receber o descarte de todo o lixo dos visitantes."

Lixo foi maior que esperado? O local recebeu muito mais público do que o estimado? Estrutura insuficiente?

Não adianta desviar o foco. O "x" do lixo não é excesso de público, falta de lixeiras, fiscalização, tampouco o "DNA do povo": é a falta de política de cidadania, de cultura.

No Brasil existe uma promiscuidade entre cultura e entretenimento, política e camaradagem. É preciso ter coragem de separar as coisas:

Política não é parentela, irmandade, camaradagem.
Cultura não é entretenimento, lazer, distração, passatempo.

Esse é o "x" do lixo do AMANHÃ e de HOJE.




Praça Mauá: dia seguinte à inauguração do Museu do Amanhã (Foto Marcio Almeida)

20 de dezembro de 2015

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O que será do amanhã com um hoje sem educação?

 
Museu do Amanhã, RJ: dia seguinte à sua inauguração (foto Marcio Almeida)

No Brasil, a Política está para a Família, como a Cultura para o entretenimento. Mesma promiscuidade. Mesma hipocrisia. É preciso separar as coisas, ter a coragem e a lucidez de reconhecer a especificidade de cada uma, sob o risco de desmerecer e depauperar uma e outra. 

Política não é família, parentela, irmandade, camaradagem.
Cultura não é entretenimento, lazer, distração, passatempo.

Cultura no Brasil é sinônimo de show de música, show na praia, banda, palco montado, espetáculo, fogos de artifício. Um belo dia, inaugura-se um museu – fato memorável não só Brasil, como na cidade maravilhosa, “terra do samba da mulata e do futebol”: um museu? Ohhhhh! Em toda minha vida eu só vi dois museus serem inaugurados aqui. 

O Museu é de fazer cair o queixo de tão lindo, as linhas falam, evocam, inspiram, elevam, enfim, abrem-nos as portas e a imaginação do futuro. Foram quatro anos de construção, caos no trânsito e bate-boca acalorado entre detratores e defensores de todo um projeto de revitalização “cultural” da cidade. O projeto é arrojadíssimo, assinado por um dos mais talentosos arquitetos contemporâneos (Santiago Calatrava), e tem nome e vocação promissores – “Museu do Amanhã”, espaço dedicado à ciência criado para pensar o futuro. Finalmente pronto, hora de cortar a faixa. Nesse instante tão raro e significativo, que fato chama-me a atenção? 

O Museu por si mesmo parece não bastar: é preciso show, armar o palco, fazer o “viradão carioca” madrugada afora, bem no meio do espaço público frente ao Museu, ambos recém-nascidos. A pergunta que me faço: qual a necessidade de se fazer um show no dia da inauguração de uma preciosidade dessas? A menos que a mensagem seja esta: Cultura não basta para atrair as pessoas, tem que ter algo mais para alegrar, divertir, agitar a galera – leia-se: entretenimento. E a triste constatação na manhã do dia seguinte, tanto mais para um Museu que convida a refletir sobre o futuro com base no impacto das ações humanas no planeta: a praça do Museu, uma lata de lixo só. Dane-se! - de que servem lixeiros, não é mesmo?

Nada contra shows, entretenimento, não se trata disso. A questão é outra, bem outra, a qual resumo nos seguintes termos: o que será do AMANHÃ com um HOJE sem educação? O Brasil tem camaradagem e divertimento de sobra: somos um País jovem, solar, alegre, bem-humorado, musical, sensual, País do bate-papo, boteco, futebol. O que falta são ações que vão até a raiz do ser humano e o possibilitem interpretar o mundo e responsabilizar-se por ele. Lygia Fagundes Telles disse uma vez: 'Sabendo interpretar o que lê, o estudante organiza as ideias e produz bom texto. O resto é conversa, falsa teoria'. Eis alguém com coragem e lucidez.

Ser capaz de interpretar e produzir o bom, o bem. Esse é o sentido de cidadania, que nada mais é do que uma política da cultura e uma cultura da política. Ou simplesmente isto: agir segundo fins e valores que façam brotar uma certa ideia daquilo que o homem é capaz de fazer de melhor.

O resto, como diz a nobre escritora, é conversa, falsa teoria.

Claudio Pfeil

16 de dezembro de 2015

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Les Demoiselles de New York



Picasso, Les Demoiselles d'Avignon

Os franceses, para quem Picasso é Picassô, e que possuem esmagadora maioria das obras do mestre espanhol – o espetacular Musée Picasso no Marais que o diga – devem sentir, digamos, uma pontinha de castração quando vêm a New York. Sabe álbum de figurinha que a gente tem quando criança e fica faltando algumas poucas para completar, em especial uma, aquela, a mais importante? 

Pois bem: Les Demoiselles d'Avignon, considerada a tela inaugural do Cubismo, realizada em 1907 no atelier de Picasso, em Montmartre, encontra-se, desde 1939, no MOMA, e não na cidade luz, onde Picasso produziu a maior parte de sua vida-obra. Resta um consolo. Paris tem arte e beleza de sobra, não se pode ter tudo: e é bom que seja assim. Um motivo a mais para se vir a New York.

Lembro de ter lido uma vez, palavras do próprio Picasso, que as Demoiselles representaram para ele um “primeiro exorcismo”. Bem, só mesmo ele para explicitar o que quis dizer com isso, mas com certeza há de ter sido uma experiência dos diabos, como o primeiro beijo, o primeiro sexo, o primeiro amor: o título inicial era El Burdel de Aviñón, alusão a uma rua caliente de Barcelona na qual Picasso vivia quando era rapazote, antes de emigrar para Paris. 

Certo é que, depois das Demoiselles, a pintura nunca mais foi a mesma: ela sofreu, digamos, uma torção, uma con-torção radical. Não foi à toa que gente boa, como o mestre Matisse – e cuja La danse está na sala ao lado das Demoiselles - torceu a cara para elas. E que muita gente continua a torcer - os parisienses, que não gostam de por azeitona na empada de ninguém, mais ainda. Nós, brasileiros, que vivemos uma castração análoga na própria pele, nos compadecemos com eles: Abaporu, de Tarsila, obra-prima de nossa pintora mais importante, encontra-se no MALBA, Museu de arte latino-americana de Buenos Aires, tendo passado das mãos de um empresário brasileiro a de um colecionador argentino num leilão na Christies. E tudo indica que nem o maior dos exorcismos a fará voltar ao Brasil, salvo um milagre. 

Seja como for, encontrar as Demoiselles é dos mais prazerosos rendez-vous que se pode ter em New York. Depois de visitar o MOMA a gente se sente meio exorcizado como se o próprio Picasso estivesse a exclamar em meio a suas Demoiselles: Eso es maravilloso, estoy aquí!

Les Demoiselles de New York. Sorry, Paris.

Claudio Pfeil