Uma moça que foi ao Rock in Rio, tendo esquecido o celular no
banheiro, conseguiu recuperá-lo: “Não sei quem foi, mas agradeço muito”, postou
feliz da vida no Facebook, vibrando mais
do que qualquer roqueiro.
Fez-me lembrar um episódio que ocorreu comigo há alguns anos quando fui
pela primeira vez ao Espaço Cultural Tom Jobim, no coração do Jardim Botânico,
Rio de Janeiro. Adentrar a natureza noturna sob o clarão da lua, por entre
casas coloniais e árvores frondosas, já teria valido o programa. A peça
era Bodas de Sangue, de Garcia Lorca,
mas o ponto alto da noite, que a fez valer para toda a vida, foi uma lição, ou
melhor, uma ação concreta de ética. Isso mesmo: a ética ainda existe, não
no dicionário ou livro de filosofia, mas na prática.
A peça já se encerrara, quase meia-noite. Um taxi parado à entrada do
grande portão de ferro piscava os faróis, o mesmo que eu pegara em Copacabana -
um aceno de mão, o taxista saiu do carro.
- O senhor deixou cair seus óculos no banco de trás – dirigiu-se a mim estendendo-me o Ray-Ban.
- Meus óculos? – surpreendi-me com o que não havia me dado conta até então
batendo a palma da mão no bolso vazio da calça.
- Já tinha passado aqui faz uma hora mais ou menos, mas o espetáculo ainda
não tinha acabado, daí resolvi dar mais uma corrida e voltei.
- Nossa, muito obrigado - apertei-lhe a mão admirado com o gesto - o
senhor veio aqui, esperou, foi e voltou, perdeu todo esse tempo...poxa, muito
obrigado...obrigado mesmo.
- Não foi nada, fiz minha obrigação - respondeu-me kantianamente
- Pensei em deixar com os guardas do Jardim, mas achei melhor entregar os
óculos na sua mão.
Fiquei entre contentamento e embaraço diante do taxista segurando os
meus óculos que àquela altura, eram mais do que simples óculos, haviam sido
transformados pela ótica do taxista: um homem que naquela noite de domingo dera
voltas no relógio e na cidade para cumprir o que ele próprio considerara sua
obrigação, obrigação que ele livremente se impusera. Livremente por quê? Porque
nada o obrigava a isso, senão uma escolha sua. O taxista disse bem: a obrigação
era dele, foi ele que se lhe a deu,
escolheu. Nem mesmo o que poderia ter-lhe servido como desculpa ou impedimento – horário de trabalho, contratempo das idas e
vindas, espera prolongada, incerteza de me encontrar, “achado não é roubado” – o
desobrigou, pelo contrário: todas essas possibilidades foram a condição mesma
da sua obrigação. A obrigação moral - o que chamamos comumente de voz da
consciência - anda de mãos dadas com a liberdade, escolha de uma ação dentre
várias possíveis. Se não sou livre para escolher, não posso me sentir moralmente
obrigado a nada. O filósofo Alain dizia de forma bem humorada e certeira que “a
moral nunca é para o vizinho”: ela é a resposta à pergunta “o que eu devo
fazer?” (e não “o que os outros devem fazer?”: isso é moralismo), a ação que eu
escolho como sendo “minha obrigação” independentemente do olhar do outro - “sem
que os deuses e os homens saibam” como dizia Platão - e de qualquer sanção ou
recompensa.
Naturalmente, há sempre um pensamento malicioso à espreita: “Obrigação
moral? Que nada! O taxista só fez isso esperando algo em troca, dinheiro,
lógico." Sim, é sempre uma possibilidade, infelizmente das mais prováveis
num País como o nosso onde o cinismo e a malandragem solaparam os ideais de
virtude e dever em todos os níveis da sociedade: otário é quem não se dá bem.
Em se tratando do taxista, não foi o caso. O desenrolar da história provou por
si mesmo.
Voltei para casa com o taxista, é claro. Na hora de pagar, dei-lhe o
dobro, triplo sei lá, do valor marcado no taxímetro.
- Não senhor, muito obrigado, esse dinheiro é seu, - devolveu
a quantia a mais que lhe dera. Insisti.
- Não senhor, fiz o que era minha obrigação, esse dinheiro é seu – sorriu
meneando a cabeça.
Por um instante senti-me orgulhoso desse homem, de mim, da humanidade, como
se no meio de toda essa lama em que estamos afundados e à qual nos acostumamos
como se fosse uma fatalidade, algo viçoso e inquebrantável permanecesse
vivo, sempre pronto a surpreender e a dignificar o que chamamos de espírito.
Despedimo-nos sem eu saber seu nome, quisera eu talvez saber mais sobre ele, um
pouco de sua vida. Hoje, ao ler a postagem da moça do Rock in Rio - “Não sei quem foi, mas agradeço muito” – revejo a
cena, eu e o homem face a face, eu e meus óculos, o homem e sua ótica. Bateu
forte, feito urgência. Desejo, desejo de palavra:
“Não sei quem foi”, mas é de conduzir-se assim que carecemos todos na vida.
“Não sei quem foi”, mas é de condutores assim que urge nosso País.
“Não sei quem foi”, mas é sob essa ótica que precisamos enxergar as
coisas mais corriqueiras do dia a dia e orientar nossas ações.
“Não sei quem foi” mas é desse gesto que faço-me esperança - não na harmonia
utópica entre humanos - mas na compatibilidade cordial de todas as singularidades
existentes no universo.
“Não sei quem foi”, mas só tem um nome: ética.
E ética não tem preço, unicamente apreço: apreço à ação que se obriga a
cumprir em respeito a si e ao outro.
A humanidade está
perdida, “procura-se”: o taxista da ó(é)tica e o benfeitor anônimo do Rock in
Rio dão pistas de onde e como reencontrá-la. A força do que se perdeu reside na
certeza, não de se achar, mas de que se está buscando.
Claudio Pfeil