13 de agosto de 2014

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Sempre fora de "tudo isso"




Uma leitora do Diário, comentando a poesia Homenagem ao Gigante (http://claudiopfeil.blogspot.com.br/2014/08/homenagem-ao-gigante.html), faz a seguinte colocação: “Seu texto é muito lindo, mas tenho minhas dúvidas quanto ao personagem. Será que ele era tudo isso mesmo?”

O questionamento é para lá de oportuno. Pelo menos, no viés analítico. 

O que a leitora chama de “personagem", é o que em psicanálise chamamos de "identificações"; é o nosso cartão de visita, o que somos, ou melhor, o que acreditamos ser e que nos serve de identificação pessoal e social: faço isso ou aquilo, sou assim ou assado, homem ou mulher, nasci em tal lugar, filho de fulano e sicrano, filho adorado ou rejeitado, nome, sobrenome, apelido etc. Assim, por “personagem”, entendemos uma lista de significantes singulares que nos identificam, que constituem o nosso Eu.

A leitora se pergunta: "Será que ele [o personagem] era tudo isso mesmo?". O que está em jogo na dúvida levantada é uma questão velha e fundamental como a própria filosofia, a saber, a da possibilidade (ou não) de adequação entre algo (o ser) e a representação deste algo (ideia do ser). Dos gregos a Kant, não há filósofo que não tenha arrancado os cabelos na tentativa de solucionar a questão. No caso que nos ocupa, podemos reformulá-la assim: será que o ser Robin Williams corresponde à ideia que se faz dele?  

Bem, o que Freud coloca em evidência com a noção de inconsciente, é precisamente o seguinte: nenhum de nós é o que pensa ser, o que reconhecemos como sendo nós mesmos. No lugar de “penso, logo existo” de Descartes, Lacan afirma: “penso onde não sou, logo sou onde não penso". 

Então, respondendo à leitora, eu diria o seguinte: 

Você tem toda a razão, cara leitora, de levantar a lebre: Robin Williams não é “tudo isso mesmo”.  Mas ele não é “tudo isso mesmo” não pelo fato dele ser aquém de “tudo isso”, aquém do gigante ao qual ele é identificado na poesia. Ele não é “tudo isso mesmo” pelo simples fato de que ele mesmo é fora do próprio personagem, “para além” de tudo isso que pensamos ou idealizamos a respeito dele. A gente pensa que sabe, mas na verdade,  não sabe nada do que diz quando afirma “eu sou isso”, “ele é aquilo”: a gente sabe do Eu (próprio e alheio), do personagem, não do que chamamos em psicanálise Sujeito, que é para além do Eu, do personagem. O Sujeito não é onde pensa que é: é mais onde não pensa ser. 

Paul Valéry dizia que “o homem é um ser das lonjuras”.  Isso vale para cada um de nós: somos sempre longe, fora de “tudo isso” que julgamos, acreditamos, idealizamos ser. No mais íntimo de nós, somos sempre estrangeiros a nós mesmos, fora do “Eu”: é o "mistério gigante sem nome" de cada um.

Voou fundo
foi-se o gigante 
sabe-se lá prumos ou porquês 
abismos grotões depressões?
Procurasse talvez o mistério gigante
mistério do homem
gigante sem nome 
- fora do Robin fora do Williams! - 
inominável silêncio
enigma infindo
des-comunal de ser 
assombro
só seu


2 comentários:

  1. Talvez por isso um autor possa criar vários personagens, suponho.
    Justamente por sermos "estrangeiros a nós mesmos, fora do 'Eu', podemos compor vários sem nos confundirmos com eles.
    (Pensamento de leiga! )

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  2. Sorte a nossa de não sermos apenas quem pensamos ser.
    Francine Murara

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