Uma leitora do Diário, comentando a poesia Homenagem ao Gigante (http://claudiopfeil.blogspot.com.br/2014/08/homenagem-ao-gigante.html), faz a
seguinte colocação: “Seu texto é muito lindo, mas tenho minhas dúvidas quanto
ao personagem. Será que ele era tudo isso mesmo?”
O questionamento é para lá de oportuno. Pelo menos, no viés analítico.
O que a leitora chama de “personagem", é o que em psicanálise
chamamos de "identificações"; é o nosso cartão de visita, o que
somos, ou melhor, o que acreditamos ser e que nos serve de identificação
pessoal e social: faço isso ou aquilo, sou assim ou assado, homem ou mulher, nasci
em tal lugar, filho de fulano e sicrano, filho adorado ou rejeitado, nome,
sobrenome, apelido etc. Assim, por “personagem”, entendemos uma lista de
significantes singulares que nos identificam, que constituem o nosso Eu.
A leitora se pergunta: "Será que ele [o personagem] era tudo isso
mesmo?". O que está em jogo na dúvida levantada é uma questão velha e
fundamental como a própria filosofia, a saber, a da possibilidade (ou não) de
adequação entre algo (o ser) e a representação deste algo (ideia do ser). Dos
gregos a Kant, não há filósofo que não tenha arrancado os cabelos na tentativa
de solucionar a questão. No caso que nos ocupa, podemos reformulá-la assim:
será que o ser Robin Williams
corresponde à ideia que se faz dele?
Bem, o que Freud coloca em evidência com a noção de inconsciente, é
precisamente o seguinte: nenhum de nós é o que pensa ser, o que reconhecemos
como sendo nós mesmos. No lugar de “penso, logo existo” de Descartes,
Lacan afirma: “penso onde não sou, logo sou onde não penso".
Então, respondendo à leitora, eu diria o seguinte:
Você tem toda a razão, cara leitora, de levantar
a lebre: Robin Williams não é “tudo isso mesmo”. Mas ele não é “tudo isso mesmo” não pelo fato
dele ser aquém de “tudo isso”, aquém do gigante ao qual ele é identificado na
poesia. Ele não é “tudo isso mesmo” pelo simples fato de que ele mesmo é
fora do próprio personagem, “para além” de tudo isso que pensamos ou
idealizamos a respeito dele. A gente pensa que sabe, mas na
verdade, não sabe nada do que diz quando
afirma “eu sou isso”, “ele é aquilo”: a gente sabe do Eu (próprio e alheio), do
personagem, não do que chamamos em psicanálise Sujeito, que é para além do Eu,
do personagem. O Sujeito não é onde pensa que é: é mais onde não pensa ser.
Paul Valéry dizia que “o homem é um ser das lonjuras”. Isso vale para cada um de nós: somos sempre longe,
fora de “tudo isso” que julgamos, acreditamos, idealizamos ser. No mais íntimo
de nós, somos sempre estrangeiros a nós mesmos, fora do “Eu”: é o "mistério gigante sem nome" de cada um.
Voou fundo
foi-se o gigante sabe-se lá prumos ou porquês
abismos grotões depressões?
Procurasse talvez o mistério gigante
mistério do homem
gigante sem nome
- fora do Robin fora do Williams! -
inominável silêncio
enigma infindo
des-comunal de ser
assombro
só seu
Talvez por isso um autor possa criar vários personagens, suponho.
ResponderExcluirJustamente por sermos "estrangeiros a nós mesmos, fora do 'Eu', podemos compor vários sem nos confundirmos com eles.
(Pensamento de leiga! )
Sorte a nossa de não sermos apenas quem pensamos ser.
ResponderExcluirFrancine Murara