O primeiro choque foi quando a Confeitaria Colombo de Copacabana fechou
as portas. Um dia, ao ver operários furando o mármore do chão para instalar
portas de vidro da agência bancária que tomaria seu lugar, senti furar meu
coração. Vez ou outra ao passar em frente, lembro do piano tocando no andar de
cima. Diziam que a Colombo não era mais a mesma, que estava em decadência, hora
mesmo de acabar, essas coisas ventiladas com aparência de ares progressistas. A
mim isso não importa. As coisas nunca são as mesmas e nem por isso perdem sua
razão de existir. A Colombo tinha uma: um piano tocando ao tilintar de xícaras
de chá a alguns passos do tumulto e do trânsito. Bastava subir os degraus da
elegante escadaria com passadeira vermelha e sentir que um mínimo de encantamento
é necessário à vida.
O segundo foi com o Restaurante Giotto na Praia de Botafogo. Do ônibus
em alta velocidade, vi tapumes encobrindo a vitrine. Desci voando, corri até
lá, meti o olho na fresta: o Giotto dos móveis antigos, dos lambris envernizados,
das garrafas de vinho enfileiradas nas prateleiras ao redor, dos garçons de
terno branco encardido e do primeiro fetutine parisiense de minha vida, era só
escombros. Até a placa art déco logo acima da porta de entrada - G I O T
T O (em letras douradas e fundo preto) - já tinha sido arrancada. O porteiro do
prédio, solidário à minha desolação, me informou: puseram umas madeiras hoje lá
no lixo. Fui ver. Remexi na montanha de entulho, catei a placa empoeirada e fui
embora com ela debaixo do braço. Pendurei-a no alto da parede da minha sala. De
vez em quando um curioso ao vê-la ao lado do retrato de meus bisavós, indaga: é
seu nome de família? Brinco comigo mesmo: Giotto sou eu quando eu era muito gi-ovan-otto.
Tempos depois, de acordo com o provérbio “não há dois sem três”,
sobreveio o terceiro choque: o restaurante Pronto, no baixo Leblon. Pedalando,
avistei de longe a varanda vazia, grades baixadas, tudo apagado, tomei um
susto. Nunca vi o Pronto fechado, sempre aberto a fazer par com a madrugada.
Por motivo de reforma? Um luto talvez? Nada: fechado definitivamente. Domingo à
noite, o melhor dos programas: rodízio de pizza na ampla varanda debruçada
sobre a Dias Ferreira. Assim foi durante anos. O pizzaiolo, bonachão de bigode
farto, ao me ver entrar, sinalizava através do vidro da cozinha se ainda havia
rúcula: "sim" ou "não" eram garantia das melhores pizzas que já experimentei. Os
garções, conhecia todos pelo nome. Everton, nordestino discretíssimo e
eficiente como um mordomo de filme, era tido como meu favorito pelos demais.
Acontece que sabia de cor a ordem de pizza de minha preferência e, de
“entrada”, trazia uma travessa de penne ao manjericão por conta da casa.
Favorito, será? Gilberto, o mais antigo, tão antigo que se arrastava arqueado
pelo salão parecendo babar sobre a bandeja, ao passar pela mesa, aceitasse eu
ou não, despejava dois pedaços de uma só vez dizendo: come! E eu comia, feliz
da vida, exultando, exclamando, incorporando o que vinha escrito nas toalhas de
papel: se siete soddisfatti ditelo agli amici, si no ditelo a noi.
Quisera eu numa fantasia que esse suceder de choques se limitasse à
trilogia Colombo-Giotto-Pronto. Mas onde há desejo há resistência e o próprio
do mundo é resistir. E dessa vez a colisão foi das mais fortes: o Traiteurs
de France que funciona há 24 anos em Copacabana fechará suas portas neste
domingo, 20 de janeiro. Confesso: estou consternado. Passo lá de bicicleta
quase todo dia, às vezes, só por passar, sentir o charme decadente meio vieille
France, ver senhoras penteadas tomando café com madeleines, a coluna
Morris pintada de vermelho, as baguettes fresquinhas arrumadas no cesto,
os pães de passas e nozes, de gergelim, os brioches, os croissants, os
folheados, as tortas, os Opéra, os mil folhas, os macarons, e
nesse início de ano, as galettes des Rois, feitas à moda antiga: tudo é
delicioso. Ontem fui ter com um dos sócios, Patrick, um pâtissier
sessentão que trabalhou dez anos no Méridien. Indaguei-lhe:
comment ça se fait que vous allez fermez les portes? Em resposta, o resumo de um quiprocó danado: infiltrações no teto, obras
intermináveis sem solução, o condomínio do prédio diz que não tem nada com
isso, o proprietário também não, um chutando a bola para o outro, batalha
judicial sem fim, alta astronômica do aluguel, do stress também, e para
culminar, um piripaque no coração do traiteur: je n’ai plus de force ni
d’argent pour continuer, c’est fini, fini! - arrematou com voz embargada.
Dizer o quê diante desse irremediável c’est fini ? Que estou muito triste. Que
o Traiteurs de France poderia até morrer mas nunca fechar as portas. Que os jantares chez
Apoteose não serão os mesmos sem aqueles pães. Que o mil folhas me faz sonhar. Que a galette des Rois é mesmo um presente dos reis. E que amanhã eu
passo mais uma vez por lá nem que seja para dizer: Adieu.
Passei hoje pela porta do TRAITEURS e quase tive um ataque ao ver a placa VENDE. Solidarizo-me com você. E fico também com saudades tanto da gastronomia quanto dos pâtisserie Patrick e Philipe e de seus simpáticos antigos funcionários. Esperamos que eles possam nos deliciar com sua arte de alguma maneira. Abç. Marilia Sant'Anna
ResponderExcluirNão acreditei ao ver a placa de venda do Traiteurs. procurei em outros bairros. Imposivel o desaparecimento do Traiteurs. Onde encontrar patisserie igual? Sinto-me orfã. Desejo que Patrick e Philipe tenham transmitido seus conhecimentos ou, melhor ainda, que retornem.
ExcluirLuto total! Órfãos na Tijuca!
ResponderExcluirClaudio, o Giotto foi parte da minha infância - era ali que meu pai, domingo sim, domingo não, buscava a massa que faria em casa para a visita dos meus avós.
ResponderExcluirPerdi meu pai ano passado - 5 de dezembro. Você ainda tem a placa.
Inveja.
Será que eles não abrirão em outro lugar?Não me conformo, estou tão desolada, me solidarizo com vocês.
ResponderExcluirClaudio, compartilho sua decepção, sua tristeza e seu desapontamento vendo a destruição de tão lindas memórias e vivencias nossas
ResponderExcluirtão queridas, que deveriam ser cuidadas e cultuadas. Pobre cidade tão linda, pobre pais tão rico e tão belo; da devastação da
Floresta Amazônica a derrubada de pontos tão charmosos e tradicionais vemos a destruição de um grande e belo Passado e nos perguntamos que Futuro, aliás futuro, nos aguarda?
Bjs e saudades, Rosa.