2 de outubro de 2014

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Incorporais: dos estoicos a Lacan



Lygia Pape, Ttéia

Para entender a alusão feita por Lacan em Radiofonia (1970) acerca dos “incorporais” nos estoicos, é preciso antes revisitar Platão. 

O conceito de incorporal não é uma invenção dos estoicos: ele foi introduzido por Platão que a ele atribui o estatuto de existência. A meu ver, o incorporal em Platão funciona como a premissa metafísica necessária para instauração de uma transcendência - o Mundo das Ideias - como realidade primeira e única das coisas. Sabemos que para Platão só as Ideias são verdadeiramente reais, ao passo que tudo que é sensível - os corpos - é uma meia-realidade, uma espécie de calque da realidade verdadeira. Os incorporais seriam então a chave de abóbada do sistema platônico - dicotomia entre dois mundos - em seu projeto de fundar a ciência.

Pois bem, os estoicos se contrapõem a isso. Eles recusam em bloco a teoria platônica das ideias, que faz do incorporal algo real. Os estoicos só atribuem o estatuto de realidade aos corpos. Essa recusa pode ser formulada nos seguintes termos: como o que não tem corpo pode ter realidade? Como o incorporal pode existir de fato? Assim, para os estoicos, é impossível conhecer os incorporais uma vez que só o que é apreendido pelos sentidos pode ser conhecido (mesma perspectiva do fenômeno em Kant). O que nos é permitido então conhecer? O corpo (uma vez que está situado no espaço), um fato (uma vez que está inscrito no tempo), o mundo inteiro (que está no vazio): tudo isso é apreensível sensivelmente. Mas o espaço, o tempo e o vazio, em si mesmos, não são apreensíveis sensivelmente, nós só acedemos a eles mediante uma espécie de transposição do pensamento: o incorporal é um puro objeto de inferência, nós não o conhecemos diretamente, apenas indiretamente (como o Real em Lacan). Assim, o incorporal para os estoicos é, ele não existe verdadeiramente, em virtude dele não estar inserido na sequência causal de fenômenos reais, não podendo portanto ser causa nem efeito de nada. 

A alusão de Lacan aos estoicos parece se justificar quando ele afirma “o incorporal é uma função”. O que é uma função? É exatamente o que faz da pura abstração matemática uma realidade, da topologia uma aplicação e da lógica uma análise. Ao afirmar que a estrutura está na linguagem, Lacan entende a estrutura, mutatis mutandis, à maneira do incorporal nos estoicos: ela não tem realidade em si, é um puro objeto de inferência. Nada subjaz à estrutura (como o objeto em si kantiano): não existe alguma coisa no real que se ampliaria e desembocaria numa estrutura. Nada disso: a estrutura só pode ser pensada a partir da montagem da linguagem (assim como nos estoicos, só é possível se pensar o tempo a partir do fato). É a própria montagem da linguagem que faz estrutura, estrutura da realidade. 

Em suma, creio que ao recorrer à noção estoica de incorporal, Lacan visa a mostrar seguinte: a estrutura não é a origem da linguagem, é efeito dela. Não podemos conhecê-la, mas somente demonstrá-la. Da linguagem não se remonta à estrutura como à nascente de um rio: ela só é abordável, só toma corpo, no próprio fluir da linguagem. Ela não existe: ela é somente na e pela linguagem.

Um comentário:

  1. Seria a estrutura o insconsciente, e a linguagem aquilo que o forma, não o que o descreve?

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