Lembrei-me
de um episódio. Era Carnaval: a multidão alegre, barulhenta, espremia-se de
suor nas ruas, em plena luz do dia, fechando o trânsito. Um casal dentro de um
carro atolado na massa humana – ele ao volante, ela ao lado – quis abrir
passagem a todo custo: pé no acelerador, buzina, gestos nervosos por detrás do
vidro fechado. Não saíam do lugar, muito pelo contrário: o carro parecia
comprimir-se sob o embalo de corpos colados à sua
lataria, alguns deitados no capô como num sofá. A moça, enfurecida, resolveu
tomar uma atitude. Não sei como, conseguiu abrir a porta, saiu do carro. Se eu
pudesse tê-la aconselhado, teria lhe dito que jamais fizesse o que fez: dedo
apontado sabe Deus para quem, cara feia contra tudo e todos, despejava sua ira
sobre a multidão, a qual, mais acesa do que nunca, retribuiu-lhe em coro,
batendo as mãos no carro:
–
Pi-ra-nha! Pi-ra-nha! Pi-ra-nha!
Não
se mexe com Momo: carnaval é festa profana. A moça ficou ainda mais
transtornada, fora de si, mas seu instinto de sobrevivência pareceu falar mais
alto. Imediatamente enfiou-se no carro. Mas sua ira, continuava a despejar para
o lado de fora, sempre com os vidros levantados: ela é irada, mas não é boba.
Quanto mais ela se agitava e vociferava dentro – como num filme mudo – mais a
multidão se eletrizava e multiplicava a chacota do lado de fora – risos,
trejeitos, vaias, gargalhadas – fazendo do teto do carro um verdadeiro
tamborim. Foi quando a moça resolveu abaixar apenas alguns centímetros do vidro
para insultar mais diretamente a multidão. Coitada, o carro quase foi virado do
avesso. E um segundo coro entoou em uníssono, no ritmo do tam tam tam na
capota:
–
Mal co-mi-da! Mal co-mi-da! Mal co-mi-da!
Dessa
vez o tiro não pegou só nela, mas também no coitado do motorista que até então, consciente da ameaça que lhe pesava sobre a cabeça – as duas
mãos ao volante como que agarrado a uma boia de salvação – adotara a mais
prudente das atitudes: calma e silêncio. Se ela é piranha, o problema é dela,
mas se é mal comida, a culpa é dele, quem mandou não ser homem suficiente? Castração,
meu caro, a eterna ameaça...
A
multidão pode até não ter lido Freud, mas deu prova de que sabe, na mais justa das intuições, como depreciar uma mulher e um homem.
A puta e o
homem que não é homem.
A
voz do povo é a voz de Freud.
Psicanálise
no carnaval.
Claudio Pfeil
Muito bom. Kkk
ResponderExcluirMuito bom. Kkk
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