Uma leitora escreveu-me uma
longa mensagem. Naturalmente, não vou entrar no teor da mesma, seria totalmente
indelicado e desrespeitoso. Permitirei-me apenas desenvolver um ponto que me
chamou particularmente a atenção, o qual, no meu entender, sustenta e fomenta
essa guerra entre diferentes « discursos », partidários ou não, seja nas redes
sociais, seja no bate-boca, ou ainda no corpo a corpo.
A leitora faz parte de sua
admiração pelo meu trabalho, mas diz também estar bastante chateada e
desapontada em relação ao meu "ponto de vista". De minha parte, li e
reli atentamente sua mensagem, a qual pode ser resumida nisto : ela não
concorda comigo, e por conta disso, não compreende minha posição. Por vezes,
tive a sensação de que ela fazia menção a coisas que não tinham nada (ou pouco)
a ver com minha escrita; por vezes, pareceu me desabonar pretextando exatamente
a mesma coisa que eu penso, certa como 2 + 2 são 4 de estarmos às antípodas um
do outro. Ou seja: ela se chateia comigo por eu não estar de acordo com ela, e
embora diga respeitar meu ponto de vista, não consegue compreendê-lo uma vez
que discorda dele, ainda que os motivos por ela alegados não difiram em
essência dos que eu costumo sustentar através da minha letra. Ela afirma
defender a democracia, eu também. Ela está certa disso, eu também. Em suma,
estamos e não estamos no mesmo barco.
A primeira coisa que me
ocorreu foi lhe indagar: você leu meu artigo? Ela demorou-se um pouco a
responder. Insisti. Finalmente disse : não. Em seguida, fez algumas considerações
mais, e despediu-se anunciando a intenção de não mais acompanhar meu trabalho.
O que dizer? Deixei-a à
vontade para fazer o que lhe conviesse. Convidei-a, antes, a ler meu texto e,
caso naturalmente desejasse, a dialogar depois. A saber que, dialogar exige,
como condição sine qua non, que os interlocutores observem rigorosamente uma
diferença radical. Que diferença é essa ?
Compreender não tem nada a
ver com concordar, concordar não tem nada a ver com compreender.
Pode-se concordar compreendendo.
Pode-se compreender
discordando.
Pode-se não compreender
concordando.
Pode-se não compreender e
não concordar.
Não sou bom matemático, mas
nessa equação envolvendo gosto e pensamento, aquela aula chata e complicada de
análise combinatória não só cabe como serve para evitar a guerra que estamos
vivendo atualmente no front político entre palpiteiros e debatedores («
debatedores ») entrincheirados. Ouço e leio muita gente se indignando contra a
« disseminação do ódio », mas a maioria não move uma palha mental sequer para
evitá-lo, pelo contrário, quer porque quer que o outro concorde com ela. Nenhum
dos lados quer dialogar : o que cada um quer é estar certo, que o outro lhe dê
razão. O objetivo não é se acordar, ver de que maneira diferentes perspectivas
podem ampliar a visão de todos, mas de fazer com que um se dobre à certeza do
outro. Do lado oposto da trincheira, mesmíssima tática, quase sempre malograda.
A guerra está deflagrada, a língua come solta. Conheço uma que defende a
democracia com tantas unhas e dentes que facilmente engoliria aqueles que acusa
de fascistas só por não estar de acordo com ela. O resultado é tanto o desgaste
pessoal quanto o deterioramento das relações : no melhor dos casos (como o da
leitora em questão), a pessoa se sente chateada e desapontada, em casos mais
dramáticos, ofendida e mortificada por uma miscelânea de sentimentos de
amargura e rancor.
Há que se atentar, repito,
para a diferença radical entre concordar e compreender. Vou dar um exemplo
literalmente feijão com arroz: uma amiga minha quando vem à França, traz feijão
e arroz na mala. Sabe por quê ? Ela torce o nariz para comida francesa, da qual
sou fã, e prefere forrar o estômago em casa para não ter que passar perrengue
na rua. Portanto, discordamos radicalmente : ela odeia, eu adoro – é tanto um
direito dela quanto meu. Se eu pretender ou induzi-la a concordar comigo a fim
de sentarmos à mesa de um restaurante parisiense em torno de um « confit de
canard » , morrerei de fome e perderei uma amiga. Ela corre menos risco porque
eu adoro feijão com arroz, mas o raciocínio no sentido inverso continua
valendo.
O que não impede a nenhum
dos dois de compreender a riqueza sensorial e histórica da culinária francesa,
e de reconhecer, além do gosto de cada um, os motivos que fazem dela uma das
mais inventivas, bonitas e refinadas e que cultura universal, até então, foi
capaz de criar. A « cuisine française » não é meramente um conjunto de receitas
e ingredientes, é uma « instituição », no sentido em que institui um modo de
vida e uma concepção estética e degustativa da temporalidade: é toda uma
orquestração do conviva com a atmosfera e o ritmo que envolve a refeição – o
aperitivo, a mesa, a entrada, o pão, o vinho, o prato principal, a sobremesa,
os queijos, o digestivo, os intermináveis bate-papos, as baforadas de cigarro.
Da mesma forma, um texto é mais do que um simples conjunto de gostos e
preferências : é uma orquestração de ideias, e compreender um texto é ser capaz
de perceber a orquestração interna que as fundamenta. Discordar simplesmente
por discordar, defender simplesmente por defender, atacar simplesmente por
atacar, é não ver as possíveis orquestrações do mundo. Minha amiga pode
continuar a torcer o nariz para « aqueles queijos fedorentos » como ela diz, e
eu, a sentir água na boca só de pensar neles, os dois vivendo em paz, à mesma
mesa, cada um com seu prato. É bom que seja assim. Como diz Schiller: agradar a
todo mundo é perigoso.
Trazendo o « arroz e feijão
» ao momento político atual. Eu posso ser contra o impeachment e compreender as
razões que levam uma pessoa a apoiá-lo, assim como o contrário. O que me
autoriza a classificar todos os que são contra o impeachment de corruptos, ou
todos o que o apoiam de golpistas ? Que autoridade é essa ? Que democracia é
essa ? A verdadeira esfera da democracia não é feita de simples concordância ou
discordância, simples defesa ou ataque, é feita de compreensão. Entenda-se :
compreensão das diferenças e afirmação do direito de cada uma ser como é em
respeito mútuo.
Por fim, se através da
minha letra eu me faço compreender, alegro-me com isso. Se, por sua vez, os que
me leem alegram-se com ela, alegro-me tanto mais. Porém, se num ou nos dois
casos isso não acontecer, não faz mal : escrever para mim é uma espécie de urgência
amorosa, e esse chamado – peço licença por esse egoísmo - ninguém toma de mim.
Escrevi dia desses : sou chama pensante, que arde e titubeia, mas insiste em
pensar. O destino do pensar, aprendi com os gregos, é o diálogo. E como diz a
colega Eliane Brum : o instrumento mais transgressor desse momento histórico é
o diálogo.
Claudio Pfeil
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