9 de abril de 2016

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Entre concordar e compreender





Uma leitora escreveu-me uma longa mensagem. Naturalmente, não vou entrar no teor da mesma, seria totalmente indelicado e desrespeitoso. Permitirei-me apenas desenvolver um ponto que me chamou particularmente a atenção, o qual, no meu entender, sustenta e fomenta essa guerra entre diferentes « discursos », partidários ou não, seja nas redes sociais, seja no bate-boca, ou ainda no corpo a corpo. 

A leitora faz parte de sua admiração pelo meu trabalho, mas diz também estar bastante chateada e desapontada em relação ao meu "ponto de vista". De minha parte, li e reli atentamente sua mensagem, a qual pode ser resumida nisto : ela não concorda comigo, e por conta disso, não compreende minha posição. Por vezes, tive a sensação de que ela fazia menção a coisas que não tinham nada (ou pouco) a ver com minha escrita; por vezes, pareceu me desabonar pretextando exatamente a mesma coisa que eu penso, certa como 2 + 2 são 4 de estarmos às antípodas um do outro. Ou seja: ela se chateia comigo por eu não estar de acordo com ela, e embora diga respeitar meu ponto de vista, não consegue compreendê-lo uma vez que discorda dele, ainda que os motivos por ela alegados não difiram em essência dos que eu costumo sustentar através da minha letra. Ela afirma defender a democracia, eu também. Ela está certa disso, eu também. Em suma, estamos e não estamos no mesmo barco.


A primeira coisa que me ocorreu foi lhe indagar: você leu meu artigo? Ela demorou-se um pouco a responder. Insisti. Finalmente disse : não. Em seguida, fez algumas considerações mais, e despediu-se anunciando a intenção de não mais acompanhar meu trabalho.



O que dizer? Deixei-a à vontade para fazer o que lhe conviesse. Convidei-a, antes, a ler meu texto e, caso naturalmente desejasse, a dialogar depois. A saber que, dialogar exige, como condição sine qua non, que os interlocutores observem rigorosamente uma diferença radical. Que diferença é essa ?



Compreender não tem nada a ver com concordar, concordar não tem nada a ver com compreender.



Pode-se concordar compreendendo.

Pode-se compreender discordando.

Pode-se não compreender concordando.

Pode-se não compreender e não concordar.



Não sou bom matemático, mas nessa equação envolvendo gosto e pensamento, aquela aula chata e complicada de análise combinatória não só cabe como serve para evitar a guerra que estamos vivendo atualmente no front político entre palpiteiros e debatedores (« debatedores ») entrincheirados. Ouço e leio muita gente se indignando contra a « disseminação do ódio », mas a maioria não move uma palha mental sequer para evitá-lo, pelo contrário, quer porque quer que o outro concorde com ela. Nenhum dos lados quer dialogar : o que cada um quer é estar certo, que o outro lhe dê razão. O objetivo não é se acordar, ver de que maneira diferentes perspectivas podem ampliar a visão de todos, mas de fazer com que um se dobre à certeza do outro. Do lado oposto da trincheira, mesmíssima tática, quase sempre malograda. A guerra está deflagrada, a língua come solta. Conheço uma que defende a democracia com tantas unhas e dentes que facilmente engoliria aqueles que acusa de fascistas só por não estar de acordo com ela. O resultado é tanto o desgaste pessoal quanto o deterioramento das relações : no melhor dos casos (como o da leitora em questão), a pessoa se sente chateada e desapontada, em casos mais dramáticos, ofendida e mortificada por uma miscelânea de sentimentos de amargura e rancor.



Há que se atentar, repito, para a diferença radical entre concordar e compreender. Vou dar um exemplo literalmente feijão com arroz: uma amiga minha quando vem à França, traz feijão e arroz na mala. Sabe por quê ? Ela torce o nariz para comida francesa, da qual sou fã, e prefere forrar o estômago em casa para não ter que passar perrengue na rua. Portanto, discordamos radicalmente : ela odeia, eu adoro – é tanto um direito dela quanto meu. Se eu pretender ou induzi-la a concordar comigo a fim de sentarmos à mesa de um restaurante parisiense em torno de um « confit de canard » , morrerei de fome e perderei uma amiga. Ela corre menos risco porque eu adoro feijão com arroz, mas o raciocínio no sentido inverso continua valendo.



O que não impede a nenhum dos dois de compreender a riqueza sensorial e histórica da culinária francesa, e de reconhecer, além do gosto de cada um, os motivos que fazem dela uma das mais inventivas, bonitas e refinadas e que cultura universal, até então, foi capaz de criar. A « cuisine française » não é meramente um conjunto de receitas e ingredientes, é uma « instituição », no sentido em que institui um modo de vida e uma concepção estética e degustativa da temporalidade: é toda uma orquestração do conviva com a atmosfera e o ritmo que envolve a refeição – o aperitivo, a mesa, a entrada, o pão, o vinho, o prato principal, a sobremesa, os queijos, o digestivo, os intermináveis bate-papos, as baforadas de cigarro. Da mesma forma, um texto é mais do que um simples conjunto de gostos e preferências : é uma orquestração de ideias, e compreender um texto é ser capaz de perceber a orquestração interna que as fundamenta. Discordar simplesmente por discordar, defender simplesmente por defender, atacar simplesmente por atacar, é não ver as possíveis orquestrações do mundo. Minha amiga pode continuar a torcer o nariz para « aqueles queijos fedorentos » como ela diz, e eu, a sentir água na boca só de pensar neles, os dois vivendo em paz, à mesma mesa, cada um com seu prato. É bom que seja assim. Como diz Schiller: agradar a todo mundo é perigoso.



Trazendo o « arroz e feijão » ao momento político atual. Eu posso ser contra o impeachment e compreender as razões que levam uma pessoa a apoiá-lo, assim como o contrário. O que me autoriza a classificar todos os que são contra o impeachment de corruptos, ou todos o que o apoiam de golpistas ? Que autoridade é essa ? Que democracia é essa ? A verdadeira esfera da democracia não é feita de simples concordância ou discordância, simples defesa ou ataque, é feita de compreensão. Entenda-se : compreensão das diferenças e afirmação do direito de cada uma ser como é em respeito mútuo.



Por fim, se através da minha letra eu me faço compreender, alegro-me com isso. Se, por sua vez, os que me leem alegram-se com ela, alegro-me tanto mais. Porém, se num ou nos dois casos isso não acontecer, não faz mal : escrever para mim é uma espécie de urgência amorosa, e esse chamado – peço licença por esse egoísmo - ninguém toma de mim. Escrevi dia desses : sou chama pensante, que arde e titubeia, mas insiste em pensar. O destino do pensar, aprendi com os gregos, é o diálogo. E como diz a colega Eliane Brum : o instrumento mais transgressor desse momento histórico é o diálogo. 

Claudio Pfeil 

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