Marcos Caruso em “O escândalo Philippe Dussaert” |
O
que faz de um artista, artista? O que faz da criação, arte? O que
faz de
um
objeto,
obra de arte?
Esse
é o motor,
por
assim dizer, de
“O escândalo Philippe Dussaert”, no palco da Maison
de France, no
Rio de Janeiro. Por si só, já valeria a ida ao teatro.
Pois
essas
indagações
constituem
todo um campo de pesquisa filosófico - a que se dá o nome de
Estética
-, no
qual,
filósofos, críticos ou
amadores
de arte, buscam
conceituar
o
que justamente transcende, em parte ou totalmente, a qualquer
conceito. Como
diz Kant, “o
belo,
é o que agrada universalmente sem conceito”. Sem
conceito.
Um
escândalo à
razão.
Escândalo,
do
latim scandalum,
a
etimologia diz bem:
é o que faz a gente tropeçar,
cair.
Principalmente
a partir do dia em que Marcel Duchamp transformou um urinol em obra
de arte: “A fonte”,
1917.
De
lá
para cá, a arte se desnormatizou, explodiu regras, savoir-faire,
temas,
suportes:
a
cada dia surgem novas formas de expressão, expressão do nosso
tempo, e
por
isso chamada “arte
contemporânea”.
Toda expressão do tempo é arte? Mas
o que é Arte? Perturba,
incomoda, embaraça. O
que não impede nem
exaure o
escândalo que
a arte
É
e
CAUSA,
ao
contrário: o
reativa
como uma
lufada de
ar-te vivificante.
Porquanto,
ainda que
incapazes
de conceituá-la, não deixamos de indagar até
hoje
o urinol-fonte:
isso
é Arte?
Dessa
forma,
tropeçamos em
“O
escândalo Philippe Dussaert”, texto
de Jacques
Mougenot, que
na interpretação
de
Marcos Caruso, sustenta
densidade e humor, numa dosagem e timing
perfeitos.
Comecemos
com o seguinte: alguém
que faz cópias perfeitas de Da Vinci, Manet, Cézanne, Vermeer,
Boucher,
Delacroix,Van
Eyck, é artista? Um falsário? E se, todavia, esse alguém, ao
copiar os
mestres, apagasse quaisquer personagens - homens, mulheres, animais –
e retratasse fielmente o que resta na
obra
sem
eles?
Imaginemos
La
Gioconda, sem
a Gioconda:
pois
então, foi o que fez Philippe Dussaert.
Volonté
d'effacement – vontade
de apagar –
palavras
de
Madame D'Argenson, renomada galerista e crítica de arte, que o
promoveu
e defendeu com o
mesmo ardor
com
que se
tornou
amiga e
mecena
daquele
que
considerava um
“Hamlet doente
e depressivo”.
Falsário,
em
definitivo, não
se trata de um, pois o effacement
desmente
toda intenção
de
autenticidade;
mais
ainda: dá
a ver algo a mais que o mestre não deu – o fundo do motivo
principal. Ou
seja, ao
apagar o
que em geral dá nome à obra,
Dussaert
dá a ver uma dimensão outra
do mesmo. Copista
criador? Seja como for,
de
effacement
em effacement,
o
“copista”
radicaliza o
gesto, suprimindo tudo o que há de concreto em sua obra. Resta algo?
O vazio. Eis o nihilismo
exposto
numa galeria
onde
não há outra
coisa
senão o vazio, este
elevado à obra de arte, o
criador à fortuna e fama. Ex
nihilo.
Que
escândalo!
Será
verdade? Impostura?
Arte
de vanguarda?
Quais
os critérios, limites, da arte contemporânea? Quem
haverá de decidir? Críticos de arte, colecionadores,
museus
famosos, marchands,
cotação
no mercado,
ministério
da Cultura? Só
assistindo a “O
escândalo
Philippe
Dussaert”,
não
para saber, mas indagar. Indagar
a experiência
artística, suas escabrosidades e conceitualizações, e
encarar a fala desafiante do autor,
mas
também do ator,
ambos
a
filosofar
divertindo e a
divertir
filosofando:
“É
com palavras que nada se torna uma coisa”, alfineta
Caruso.
O
que está em cena é
uma
reflexão sobre o estatuto
estético-ontológico da arte contemporânea.
Mas
o
escândalo
não para
aí.
Aliás,
não para em lugar nenhum: o próprio do
filosofar
é não parar. Por isso falei de motor: o
escândalo
nos
propulsa. Para
onde? Se
é verdade que a filosofia nos leva à
arte, filosofia e arte
nos
propulsam
para a
psicanálise. De
effacement
em effacement,
“O
escândalo Philippe Dussaert” nos
levam
a refletir sobre o
escândalo de cada um de nós: nosso
effacement,
nossa
alienação
como sujeito.
Bem
poderia chamar-se “O escândalo Jacques Lacan”. Por
quê?
Porque
para Lacan, o sujeito não é somente o ser enquanto
ele
fala,
mas sim enquanto ele
é fabricado
pela palavra. Volto
à fala de Jacques
Mougenot: “É
com palavras que nada se torna uma coisa”.
Mutatis
mutandis,
é
exatamente isso que o neologismo lacaniano parlêtre
expressa. Antes
de sermos
capazes de falar, já falam de nós, somos falados pelo Outro. Ou
seja, muito antes de existirmos
no sentido biológico, somos
no discurso dos outros. Parodiando:
é
com
palavras
que
somos
no Outro. Outro,
com “O”
maiúsculo
- a linguagem é
a forma do outro
por excelência. O
que significa dizer que o sujeito depende do Outro para ser, ou,
se
preferir, que
o ser do sujeito é uma função da palavra, do
discurso. Portanto,
mais do que sujeitos de ação, somos sujeitos agidos, co-agidos pelo
discurso que vem do Outro.
Daí
nossa alienação. Alienação
vem do latim alienus,
que significa outro. Nós
nos alienamos na medida em que
somos
subjugados
pelo
discurso do outro, fabricados
por ele. Passamos
nossa vida a falar e a pensar nas palavras que vêm de fora. Nesse
sentido, somos estrangeiros a nós mesmos. Esse
é o nosso escândalo, escândalo
de cada um: é o que faz a gente tropeçar, cair. Somos a tela do
mestre com o personagem apagado, effacé.
Pois,
na medida em que somos tomados pelo discurso do Outro, algo vivo
de nós não consegue ser capturado, simbolizado, conceitualizado, há
uma perda, uma queda, um
effacement.
Isso
ocorre no plano individual, na absoluta singularidade de cada um.
Porém,
se
abrangermos
nosso olhar, do plano subjetivo ao intersubjetivo, do individual ao
social, esse effacement
é ainda mais visível. Isso mesmo: visível.
Na
contemporaneidade,
tudo,
absolutamente
tudo, tem que passar pelo crivo da imagem, ser desvelado, desnudado.
É o ideal de um sujeito desprovido de interioridade, sem mistério,
sem segredo, um sujeito de quem os mais diferentes discursos aspiram
a dar conta. Todo mundo – leia-se:
o
Outro sob múltiplas máscaras contemporâneas – detém
a verdade sobre nós, sabe
o que somos e do que necessitamos. Somos enredados
no discurso
dos políticos, economistas, religiosos,
publicitários,
cientistas, industriais, médicos, farmacêuticos, psiquiatras,
sexólogos, dos
meios de comunicação, internet. Somos parasitados por eles.
De
que maneira? Pelo
consumo
e a
obrigação de completude.
Nenhuma
falta, nenhuma tristeza, nenhuma ferida são
admitidas.
Tudo
em nós deve
ser
sanado
com o consumo: a gente tem que consumir para ser feliz. Todos
esses discursos contemporâneos acabam por
provocar
um effacement
dos
personagens que
somos,
tornando cada um deles, como dizia
Madame
D'Argenson,
um
“Hamlet
doente
e depressivo”.
A
pergunta
que a peça enseja, a
formulo nesses termos:
será
que não
adoecemos
ou
deprimimos
justamente
por
nunca
atingir a completude que os discursos-parasitas insistem em nos
vender? Não seria
essa
injunção por
demais
visível – consumir e gozar sem limites - invadindo
todos os espaços
de
nossa
tela
de vida,
o
que
constitui nosso escândalo, faz a gente
tropeçar, cair? Pois,
se
nenhuma conceitualização é capaz de definir a Arte, nenhum
discurso é capaz de expressar a verdade do sujeito.
O que somos no Outro, é uma espécie de mentira de nós mesmos.
Os
discursos que nos parasitam funcionam,
na tela social, como
uma volonté
d'effacement. Mais
grave
do que o escândalo de alienarmo-nos a eles, é
permanecermos enredados nessa mentira por toda vida afora. A
mentira é inadmissível, diz
Caruso:
o
único lugar onde a mentira é justificada, é
o teatro. Portanto,
o
escândalo
que nos faz tropeçar, é
o mesmo que
nos convida a levantar e a
prosseguir
a caminhada, de forma mais avisada, menos
alienante.
E
aproveito a hora para
levantar, e
bater palma de pé, para Marcos Caruso -
em
atuação solo
magistral!
-,
Fernando Philbert -
direção
impecável –
Natalia Lana, cuja
cenografia minimalista
e
funcional, é
surpreendente.
“O
escândalo Philippe Dussaert”: escândalo
de todos nós.
MAISON
DE FRANCE, Rio
de Janeiro, de quinta a domingo, até 18 de dezembro