Bam-bam-bam dizia que toda experiência
do ser falante é um fracasso, pois há sempre algo que nos desafia, nos
contradiz, põe nossa palavra em xeque. O inconsciente não é correlativo de um
equilíbrio, mas sim de uma perturbação, de uma estranheza constitutiva. Em
outras palavras, o inconsciente tem uma estrutura de malogro, de mancada, de
surpresa, e interessar-se pela psicanálise é dar-lhes ouvidos, ou pelo menos,
não rejeitá-los.
Lembrei-me de um episódio que vivi há
pouco tempo, quando fui ter com um psicanalista paulistano que conhecia de
nome, li um de seus livros, assisti a uma entrevista sua na televisão. Queria
conversar com ele, falar dos meus projetos, pedir-lhe uma orientação. Marcamos
um encontro em seu consultório em São Paulo. Bilhete da ponte aérea, horário
matutino. O despertador tocou bem cedo, me preparei tranquilamente, tomei café
com calma, enchi os olhos com o alvorecer da baía de Guanabara através da
janela do táxi. Quando cheguei ao balcão de embarque:
- Senhor, o check-in encontra-se encerrado - informou-me a atendente da companhia
aérea.
Por um segundo achei que
fosse engano, que se tratasse de outro voo. Não era. Perplexo, atônito,
insisti, argumentei, pedi-lhe que abrisse uma exceção, aleguei compromisso
inadiável. Em vão:
- Sinto muito, senhor, a
aeronave já se encontra em procedimento de decolagem.
Olhei para o relógio na
esperança de encontrar nos ponteiros uma explicação, um segundo que fosse de
consolo. Costumo ser pontual, mais ainda, adiantado. Minha analista que o diga:
Vous êtes toujours en avance. Perder o avião, nunca me acontecera antes.
Como pôde acontecer? Teria eu sido imprevidente? Não, claro que não, pensava
desnorteado. Meu desnorteio era tanto maior quanto a certeza de que dispusera
de tempo de sobra para estar no aeroporto pontualmente, até mesmo antes do
horário, não tendo ocorrido nenhum percalço ao qual pudesse imputar meu
infortúnio. Duro é não ter desculpas. Falta de sorte a mim caberia? Que
importa! O fato é que eu, previdente ou não, chegara cinco minutos atrasado e
perdera o avião. Como a passagem não era reembolsável, o dilema: comprar outro
bilhete? desmarcar o encontro? Optei pelo primeiro. Minutos depois, o Pão de
Açúcar foi ficando para trás, impiedosa robustez, desafiante beleza. Enquanto
eu, entre uma nuvem e outra, ouvia a atendente com colarzinho de pérola e voz
de boneca: “Senhor, o check-in
encontra-se encerrado.”
Cheguei ao meu destino:
uma alameda arborizada do belo bairro dos Jardins, torre enorme, elevador a
jato, portas metalizadas, tudo moderníssimo. Dedo na campainha, nenhum som,
ninguém. Mão na maçaneta, abri a porta, entrei. Uma moça esguia, elegante,
quase nos quarenta, botas de couro até o joelho, blusa cacharel, folheava uma revista no sofá. Levantou os olhos,
cumprimentou-me. Minutos de silêncio. Fechou a revista, apoiando-a na perna.
- É sua primeira vez aqui?
- perguntou com voz delicada.
- Sim - respondi - e você?
Ela sorriu como se tivesse
ouvido a maior bobagem do mundo.
- Faço análise desde os
quinze anos - respondeu.
- Desde os quinze anos! -
admirei-me.
- Com ele há sete... -
precisou prontamente.
- Nem vou perguntar se
você gosta dele... - brinquei.
Ela sorriu em silêncio,
lábios cor-de-rosa. Curioso, perguntei:
- O que é fazer análise desde
os quinze anos?
Ela, apoiando os cotovelos
nas pernas, o queixo nos punhos fechados:
- O que é fazer análise
desde os quinze anos? - perguntou a si própria olhando a paisagem de concreto -
Não sei... - respondeu - O que eu sei é que hoje eu não consigo imaginar a
minha vida sem a análise... a minha vida e a análise são a mesma coisa...
entende?
Suas palavras mesclavam
segurança e fragilidade. Conversamos mais um pouco, disse-me que naquele mesmo
dia faria duas sessões, uma ali de manhã, outra logo mais à tarde. O abrir da
porta interrompeu-nos, o psicanalista fez-lhe um sinal, vi apenas a sombra de
sua mão na parede. Ela levantou-se, mais alongada do que um arranha-céu,
empunhou a bolsa, despediu-se de mim e entrou.
Aguardei mais uns minutos,
quinze talvez. Nesse tempo em que me encontrei só e em silêncio, passeei meus
olhos ao redor: paredes, quadros, estantes, objetos, livros de arte. Levantei,
fui até a janela, sentei-me novamente no sofá. A porta do consultório de novo
se abriu, a moça saiu, olhou de relance para mim arqueando as maçãs do rosto,
passou direto num passo de botas apressado. Logo em seguida, o psicanalista à
porta: terno sóbrio, contorno cheio, gravata enlaçada com zelo, óculos
redondos. Curvou-se educadamente, um giro de cabeça, disse meu nome.
Levantei-me, fui em sua direção, sorrimos um ao outro, aperto de mão.
- Obrigado por ter me
recebido - cumprimentei-o.
De súbito, fui tomado por
um sentimento de estranheza, como se algo na minha fala estivesse desarranjado,
fora do lugar. Parecia mais a fala de quem se despede, não de quem chega. Me
dei conta de ter dito algo que eu não pensara dizer, e que uma vez dito, impunha-se a mim como um bloco de
cimento: uma fala derrapante, uma falha na fala, uma falha falada. Era
exatamente isso: eu falei e falhei, falhei no falar, fal(h)ei. Que sensação
estranha! Estranheza de escapar a mim mesmo através da fala que é minha e que a
mim escapa! A falha da fala é a falha de mim. Eu me escapei pela boca. No
momento de chegar, agradecido, me despeço. Senti-me confuso, atônito. Num
ímpeto, busquei remediar:
- Me recebido, não... me
receber.
O psicanalista fez-me entrar. Consultório amplo,
confortável, mobília contemporânea, poltronas em couro, estante repleta de
livros, porta-retratos ao fundo, o divã em linhas puras, estrategicamente
posicionado no ângulo da vidraça em L, de costas para a paisagem.
- Fique à vontade - disse-me
com gentileza apontando a poltrona.
Sentamos. A entrevista foi - como dizer? - cordial,
mas o horizonte foi de estranheza. Durante a conversa, tinha a desconfortável
sensação de que após aquela fala impertinente, eu saíra do eixo, me
desaprumara. Como se algo novo, inesperado, indesejado, tivesse feito irrupção.
Mas o quê? Por que aquele incômodo?
Fim da entrevista. O
elevador em segundos levou-me ao chão. Deixei a torre, fui caminhando pelas
alamedas, o ar ainda fresco da manhã misturando-se à minha estranheza e ao
pensamento insistente: “obrigado por ter me recebido”. Que surpresa tal dizer me causara, a ponto de me sentir tragado
para um outro contexto! Surpreendia-me com a própria surpresa. O que acontecera
comigo? Sentia-me como quem perde a vez, a ocasião, a hora...
Foi quando me veio à
cabeça, como um raio: “Senhor, o check-in
encontra-se encerrado”, o colarzinho de pérola, a voz de boneca. Num espanto,
pressenti que o emprego do verbo receber no passado - “obrigado por ter me
recebido” - tinha alguma conexão com a perda do avião, como se esses dois fatos
guardassem em comum, sem nenhuma relação lógica ou causal, um sentido qualquer
de recusa da hora marcada, de des-encontro, de porta fechada, de embarque
irrealizado, de conversa encerrada antes mesmo de ter começado, de falha, de
falha da fala.
Essa intuição fez-me viver
de forma concreta, através da minha própria fal(h)a, o que nos ensina a
psicanálise: um lapso diz mais do que mil discursos. A revelação de algo que
nos surpreende através da experiência da linguagem, e do tropeço da linguagem,
é o que Lacan chama de “marca do inconsciente”. O inconsciente nos permite, não
formular uma verdade, mas sim produzir efeito de verdade numa surpresa.
A fala que falha é a falha
falada.
A fal(h)a que surpreende,
eis o inconsciente.
Gostei muito deste texto, leve, divertido. Mostra bem que o inconsciente é além do nosso eu conhecido .
ResponderExcluirPrezado anônimo
ResponderExcluirA interpretação analítica ante falta de sentido acontece justamente onde o saber não basta.
Obrigado por acompanhar o Diário.
Eu me encanto com a poesia do inconsciente que, tão delicado, rapidamente torna-se pontual e marcante nos lapsos do nosso discurso.
ResponderExcluirAdorei o texto.
"...Podia dar-lhe uma outra resposta mais breve, e dizer-lhe simplesmente que tudo isso sucedeu porque me atrasei cinco minutos. Dessa pequena causa, desse grão de areia, nasceu a minha felicidade; dele podia resultar a minha desgraça. Se tivesse sido pontual como um inglês, não teria tido uma paixão nem feito uma viagem, mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo a passear pela Rua do Ouvidor e a ouvir de política e teatro." (Cinco Minutos - José de Alencar)
ResponderExcluirSó pra dizer que não é sempre que encontramos um par de botas de couro com lábios cor-de-rosa por aí!