Dos
meus tempos de Filosofia na Sorbonne, um dos ensinamentos mais valiosos que
trouxe para minha vida foi este, dito por uma grande mestre: "il faut être à la hauteur de ce que l'on critique"
É preciso estar à altura do que se critica. Michel
Onfray, filósofo detrator da psicanálise, mais badalado por isso do que por
suas ideias filosóficas, talvez nunca tenha atinado para tal. Imaginou que
pudesse ler e compreender a fundo Freud em seis meses, e a partir de então, demoli-lo com o trator de provocações bombásticas movido por seu carisma
sedutor. Quanto mais o trator arrasa, mais o de-trator parece se comprazer diante
do espelho. Sua primeira investida contra Freud foi o "Livro negro da
psicanálise", lançado em 2010. Cinco anos depois, foi a vez da segunda:
"O Crepúsculo de um ídolo. A fabulação freudiana", numa alusão ao
título da obra de Nietszche. Deste último, Onfray, sejamos honestos, herdou por
assim dizer a virulência, só. Mas o que é a virulência por si só? Deixo a
pergunta no ar. O que sobra da Psicanálise depois do de-trator? Resumidamente isto:
a teoria do inconsciente é balela, a psicanálise é um placebo e só é válida
para as próprias neuroses de Freud. Deixo a conclusão do de-trator à livre (psic)análise de cada um.
O
que me interessa por ora é o seguinte: Michel Onfray está à altura do que ele
critica? Não me atrevo. Quem sou eu para responder? Mas outros respondem por mim, e eu
subscrevo. Vou citar apenas dois.
Elisabeth
Roudinesco, que dispensa apresentação. Mesmo assim, direi que trata-se não
somente de uma psicanalista renomada assim como das mais respeitadas historiadoras e
biógrafas da França: sua obra perpassa a Revolução Francesa, Filosofia,
Epistemologia, Judaísmo, e naturalmente Freud e Psicanálise (seu último livro é
uma biografia de Freud justamente). Escreveu o roteiro de um belíssimo
documentário intitulado "Freud e a invenção da Psicanálise. Amando-a ou
não, há que se estar a altura dela. Foi precisamente Roudinesco quem se deu o
trabalho, digno de um historiador obsessivo, de fazer o que ela mesma
qualificou de “inventário dos erros e desvios” cometidos por Michel Onfray, numa
espécie de livro-resposta ao de-trator intitulado: Por que tanto ódio?Vale a pena ler. No mínimo damo-nos conta do
seguinte: é nas alturas que a autora se
coloca para desmontar peça por peça do de-trator raso.
Jacques-Alain
Miller, precisa apresentar?
"Herdeiro espiritual da obra de Lacan", se diz e se repete nos quatro
cantos do mundo. Já virou um sobrenome: Jacques-Alain Miller-herdeiro-espiritual-de-Lacan.
Quer queiram seus admiradores, quer torçam a cara seus desafetos. Só vou dizer
uma coisa. Sem ele, a Psicanálise hoje não seria o que é: se Lacan falou, foi
Jam, como brincamos em chamá-lo em Paris 8, que escreveu e publicou, e continua
a fazê-los. Mutatis mutandis,
arriscando uma analogia longínqua e chistosa, Lacan é Sócrates, JAM é Platão.
Amando-os ou não, há que se estar a altura deles.
Pois
bem. Acabo de ler o longo artigo "Onfray déménage", de autoria de
JAM, publicado em La régle du Jeu (http://laregledujeu.org/2015/03/18/19763/onfray-demenage/). Uma vez não bastou, tive que ler e reler. Se Roudinesco faz um “inventário dos
erros e desvios” do de-trator da Psicanálise, aqui é questão de Política no
sentido grego da palavra, virtude do filósofo, homem da ágora, do espaço
público. Reflexão fina, complexa, contundente, misteriosa, irônica, erudita, bem
ao estilo de JAM. Há que se ter fôlego, não é para qualquer um.
Não
é mesmo. O artigo de JAM tem destinatário certo. E não mede palavras, ou melhor,
mede cada palavra, com régua e estilete.
Talvez seja este o momento do destinatário ouvir o ensinamento da grande mestre da Sorbonne: "é preciso estar à altura do que se
critica". E deixar o de-trator por um instante de lado, e se perguntar ante o espelho, sem charme ou artifício: sinceramente, estou?
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