27 de abril de 2013

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E(u)terno recomeç(am)ar

 Amor
Mil bilhetes
vou escrever
Mil vezes
vou dizer
Eu te amo

E daí
vou recomeçar... 

E(u)terno
recomeç(am)ar


21 de abril de 2013

2

E.X.C.L.(U.S.A).O



Imagens da CNN mostravam, re-mostravam, re-re-monstravam neste fim de semana, a captura na última sexta-feira do suspeito do atentado em Boston, Djokhar Tsarnaev. Ante a repetição da tonitruante passagem dos veículos da polícia, chamou-me a atenção um grupo no meio da multidão, festejando aos brados, punhos fechados ao alto: 

- U.S.A!...U.S.A!...U.S.A!...U.S.A!...

É isso mesmo?

Freud explica, ou pelo menos, dá uma pista para se tentar entender tal insensatez. 

É sempre um elemento exterior ao conjunto que dá consistência ao conjunto, permitindo a formação de uma identidade. Quanto maior for a rejeição do grupo em relação a um elemento de fora - seja ele  o vizinho, o estrangeiro, o inimigo, o criminoso - maior é o sentimento de estar incluído num grupo e, claro, se achar superior aos que dele não fazem parte.

No episódio em questão, a caça de um (suspeito) criminoso é o bastante para suscitar irracionalmente o fortalecimento dos laços identitários nacionais entre os que se imaginam “idênticos”. Curiosamente, embora os U.S.A seja um país multicultural, o rapaz capturado não tem um nome, digamos, muito americano.

Em tempos de crise então, apontar o dedo para fora é uma recorrente estratégia imaginária que desvia o olhar de si próprio e finge curar as feridas que estão dentro. Ninguém duvida de sua eficácia. 

A questão é saber por quanto tempo e ao sacrifício do quê e de quem. 
Aliás, a História já se cansou em mostrar. 
E em sangrar

18 de abril de 2013

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Partenon des-virginado





- Professor, de onde vem a palavra Partenon?

Não sabia. Fui procurar saber: não se tem Sócrates em vão. Surpreendente, vamos lá:

O nome Partenon parece derivar da estátua monumental da deusa Atenas, esculpida por Fídias no século de Péricles, a qual ficava dentro do templo: seu epíteto parthenos - em grego παρθένος, que quer dizer virgem - refere-se, bem, nem é preciso dizer a quê

Na Grécia Antiga parece que ainda havia deusas e moças comportadas, de recato.

Não deve ser à toa que Atenas nasceu diretamente do crânio de Zeus. Daí, deusa da sabedoria, da inteligência, das artes e também da estratégia e da guerra: com a ira de Zeus não se brinca. Do crânio de Zeus ao interior do templo a sete chaves, a deusa não corre nenhum risco, digamos, de se perder. Tampouco de ser amaldiçoada pelo trovão.

E quem não lembra das aulas de biologia lá longe?
Partenogênese, isso nos diz alguma coisa?

Pois bem:
Parthenos + genesis = origem sem fecundação = isto é, o óvulo dá origem a um ser vivo sem ser fecundado. Sorte de quem tem um colega grego no colégio.
 
Vida longa à curiosidade socrática que nos faz revisitar o Partenon, deusas virgens, a partenogênese esquecida, e acima de tudo, nossa própria ignorância.
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A fal(h)a que surpreende





Bam-bam-bam dizia que toda experiência do ser falante é um fracasso, pois há sempre algo que nos desafia, nos contradiz, põe nossa palavra em xeque. O inconsciente não é correlativo de um equilíbrio, mas sim de uma perturbação, de uma estranheza constitutiva. Em outras palavras, o inconsciente tem uma estrutura de malogro, de mancada, de surpresa, e interessar-se pela psicanálise é dar-lhes ouvidos, ou pelo menos, não rejeitá-los.

Lembrei-me de um episódio que vivi há pouco tempo, quando fui ter com um psicanalista paulistano que conhecia de nome, li um de seus livros, assisti a uma entrevista sua na televisão. Queria conversar com ele, falar dos meus projetos, pedir-lhe uma orientação. Marcamos um encontro em seu consultório em São Paulo. Bilhete da ponte aérea, horário matutino. O despertador tocou bem cedo, me preparei tranquilamente, tomei café com calma, enchi os olhos com o alvorecer da baía de Guanabara através da janela do táxi. Quando cheguei ao balcão de embarque:

- Senhor, o check-in encontra-se encerrado - informou-me a atendente da companhia aérea.

Por um segundo achei que fosse engano, que se tratasse de outro voo. Não era. Perplexo, atônito, insisti, argumentei, pedi-lhe que abrisse uma exceção, aleguei compromisso inadiável. Em vão:

- Sinto muito, senhor, a aeronave já se encontra em procedimento de decolagem.

Olhei para o relógio na esperança de encontrar nos ponteiros uma explicação, um segundo que fosse de consolo. Costumo ser pontual, mais ainda, adiantado. Minha analista que o diga: Vous êtes toujours en avance. Perder o avião, nunca me acontecera antes. Como pôde acontecer? Teria eu sido imprevidente? Não, claro que não, pensava desnorteado. Meu desnorteio era tanto maior quanto a certeza de que dispusera de tempo de sobra para estar no aeroporto pontualmente, até mesmo antes do horário, não tendo ocorrido nenhum percalço ao qual pudesse imputar meu infortúnio. Duro é não ter desculpas. Falta de sorte a mim caberia? Que importa! O fato é que eu, previdente ou não, chegara cinco minutos atrasado e perdera o avião. Como a passagem não era reembolsável, o dilema: comprar outro bilhete? desmarcar o encontro? Optei pelo primeiro. Minutos depois, o Pão de Açúcar foi ficando para trás, impiedosa robustez, desafiante beleza. Enquanto eu, entre uma nuvem e outra, ouvia a atendente com colarzinho de pérola e voz de boneca: “Senhor, o check-in encontra-se encerrado.”

Cheguei ao meu destino: uma alameda arborizada do belo bairro dos Jardins, torre enorme, elevador a jato, portas metalizadas, tudo moderníssimo. Dedo na campainha, nenhum som, ninguém. Mão na maçaneta, abri a porta, entrei. Uma moça esguia, elegante, quase nos quarenta, botas de couro até o joelho, blusa cacharel, folheava uma revista no sofá. Levantou os olhos, cumprimentou-me. Minutos de silêncio. Fechou a revista, apoiando-a na perna.

- É sua primeira vez aqui? - perguntou com voz delicada.

- Sim - respondi - e você?

Ela sorriu como se tivesse ouvido a maior bobagem do mundo.

- Faço análise desde os quinze anos - respondeu.

- Desde os quinze anos! - admirei-me.

- Com ele há sete... - precisou prontamente.

- Nem vou perguntar se você gosta dele... - brinquei.

Ela sorriu em silêncio, lábios cor-de-rosa. Curioso, perguntei:

- O que é fazer análise desde os quinze anos?

Ela, apoiando os cotovelos nas pernas, o queixo nos punhos fechados:

- O que é fazer análise desde os quinze anos? - perguntou a si própria olhando a paisagem de concreto - Não sei... - respondeu - O que eu sei é que hoje eu não consigo imaginar a minha vida sem a análise... a minha vida e a análise são a mesma coisa... entende?

Suas palavras mesclavam segurança e fragilidade. Conversamos mais um pouco, disse-me que naquele mesmo dia faria duas sessões, uma ali de manhã, outra logo mais à tarde. O abrir da porta interrompeu-nos, o psicanalista fez-lhe um sinal, vi apenas a sombra de sua mão na parede. Ela levantou-se, mais alongada do que um arranha-céu, empunhou a bolsa, despediu-se de mim e entrou.

Aguardei mais uns minutos, quinze talvez. Nesse tempo em que me encontrei só e em silêncio, passeei meus olhos ao redor: paredes, quadros, estantes, objetos, livros de arte. Levantei, fui até a janela, sentei-me novamente no sofá. A porta do consultório de novo se abriu, a moça saiu, olhou de relance para mim arqueando as maçãs do rosto, passou direto num passo de botas apressado. Logo em seguida, o psicanalista à porta: terno sóbrio, contorno cheio, gravata enlaçada com zelo, óculos redondos. Curvou-se educadamente, um giro de cabeça, disse meu nome. Levantei-me, fui em sua direção, sorrimos um ao outro, aperto de mão.

- Obrigado por ter me recebido - cumprimentei-o.

De súbito, fui tomado por um sentimento de estranheza, como se algo na minha fala estivesse desarranjado, fora do lugar. Parecia mais a fala de quem se despede, não de quem chega. Me dei conta de ter dito algo que eu não pensara dizer, e que uma vez dito, impunha-se a mim como um bloco de cimento: uma fala derrapante, uma falha na fala, uma falha falada. Era exatamente isso: eu falei e falhei, falhei no falar, fal(h)ei. Que sensação estranha! Estranheza de escapar a mim mesmo através da fala que é minha e que a mim escapa! A falha da fala é a falha de mim. Eu me escapei pela boca. No momento de chegar, agradecido, me despeço. Senti-me confuso, atônito. Num ímpeto, busquei remediar:

- Me recebido, não... me receber.

O psicanalista fez-me entrar. Consultório amplo, confortável, mobília contemporânea, poltronas em couro, estante repleta de livros, porta-retratos ao fundo, o divã em linhas puras, estrategicamente posicionado no ângulo da vidraça em L, de costas para a paisagem.

- Fique à vontade - disse-me com gentileza apontando a poltrona.

Sentamos. A entrevista foi - como dizer? - cordial, mas o horizonte foi de estranheza. Durante a conversa, tinha a desconfortável sensação de que após aquela fala impertinente, eu saíra do eixo, me desaprumara. Como se algo novo, inesperado, indesejado, tivesse feito irrupção. Mas o quê? Por que aquele incômodo? 

Fim da entrevista. O elevador em segundos levou-me ao chão. Deixei a torre, fui caminhando pelas alamedas, o ar ainda fresco da manhã misturando-se à minha estranheza e ao pensamento insistente: “obrigado por ter me recebido”. Que surpresa tal dizer me causara, a ponto de me sentir tragado para um outro contexto! Surpreendia-me com a própria surpresa. O que acontecera comigo? Sentia-me como quem perde a vez, a ocasião, a hora... 

Foi quando me veio à cabeça, como um raio: “Senhor, o check-in encontra-se encerrado”, o colarzinho de pérola, a voz de boneca. Num espanto, pressenti que o emprego do verbo receber no passado - “obrigado por ter me recebido” - tinha alguma conexão com a perda do avião, como se esses dois fatos guardassem em comum, sem nenhuma relação lógica ou causal, um sentido qualquer de recusa da hora marcada, de des-encontro, de porta fechada, de embarque irrealizado, de conversa encerrada antes mesmo de ter começado, de falha, de falha da fala.

Essa intuição fez-me viver de forma concreta, através da minha própria fal(h)a, o que nos ensina a psicanálise: um lapso diz mais do que mil discursos. A revelação de algo que nos surpreende através da experiência da linguagem, e do tropeço da linguagem, é o que Lacan chama de “marca do inconsciente”. O inconsciente nos permite, não formular uma verdade, mas sim produzir efeito de verdade numa surpresa. 

A fala que falha é a falha falada.

A fal(h)a que surpreende, eis o inconsciente.