11 de novembro de 2014

0

Obra magna

Drøbak, Claudio Pfeil


Feliz é o homem
capaz de se encantar
e fazer o encanto durar
o tempo que for possível

Para além do sonho
e da fantasia
no cair da noite
no alvorecer do dia
Em horas de paz
e também de agonia
no corpo presente
na ausência vazia

No seco, no duro
no quente, molhado
no espinho, no verde
no cinza, algodão
Na voz que se cala
no toque macio
na boca que beija
na palavra não

No vento que sopra
na falta de ar
no silêncio da pedra
no querer amar
Na saudade que bate
na onda revolta
no gozo sem nome
no sim da paixão

Na insistência do mesmo
no rebento do novo
na rotina caseira
na incerteza do chão
No lençol esticado
no gato dormindo
no café da manhã
no eu te amo ouvindo

Sorte grande
tem este homem
que passa o tempo
sem perder seu tempo

Pois que do tempo
que o verá morrer
encanta-se a recriar o tempo
A fazer do instante
mais do que um instante
Nem coisa, nem nada
encantamento puro
duração do encanto
adoração da vida

Feliz é o homem
Grande é a sorte
Eis que em verdade
Sorte não é

Arte! pois
é o que faz este homem
que o tempo dissolve
e que da dissolução faz
o sentido de si
sua obra magna

Diário de um analisando em Paris, p.118-120

8 de novembro de 2014

3

Rubonito



Rubeni
Ru faz cru
Cru crudeza
Cruzilhada
Ru ruela
Cru cruel
Cru cronômetro
Recrudescer fastio
Temperança crépida
Prurido d’alma

Casamentos desfeitos
Fardas cremadas
Escrúpulos crus
Crepúsculos nus
Verde seiva
Verdade de ser

Cru de cria
Cria coragem
Cru de fé
Cru de cruz
Cru de céu
Cru de novo
Amanhecer

Tão bonito
Rubenito
Benito traz
Na grafia
Bonito

Ru ben i
Rub-ente de bem
Bem faz
Na gente
Bem

Benito bem
Rubonito dito
Rubenito seja
Para além do grafo
Para além do grito
Nunca além da vida

Uhú ur-rú ur-rú!
Beni bene
Bene beni!

21 de outubro de 2014

3

Pedro

Pedro II, Petrópolis, RJ

Existiu um governante que adorava livros
Pensar que já tivemos um governante que adorava livros
Pensar que já tivemos um governante que adorava pensar
Pensar que já tivemos um governante que pensava
Pensar que pensar é coisa de Pedro

Pedro
Não o primeiro
O segundo
Um Pedro que vale por dois
Mais talvez
Muito mais
Quem sabe até
Por todos nós
Cegos no meio de tanto cinismo
Oportunismo
Ignorância

Pedro
Tu mesmo
Que um livro tens à mão
Sentado
Levanta-te!

Já que tu és Pedro
Majestosa pedra de nossa memória
Que a este solo tanto amaste
A ponto de ter um quinhão de terra
À cabeça deitada
Em teu leito de morte

Pedro
Tu mesmo
Levanta-te!

Faça-os calar
Suplico-te!
Faça-os calar esses todos
Pérfidos!
Cafajestes!
Desgovernados de si próprios!
Que se arvoram em nos governar
Se banqueteiam em usurpar
Sujos a nos sugar

E se por amor ainda fores capaz
Pedro
Tu mesmo
Faça-nos ouvir
Todos
Sem exceção
Os que por bem dessas pedras
Damos-lhes o coração

“Tu és Pedro
Pedreiro do firmamento
E com esta pedra que carregas na mão
Não precisas de salvadores
Nem bons, nem ruins
Menos ainda dos falsos
Sabes Pedro, o porquê?
Tens a ti mesmo como obra
Tua obra, tu mesmo
Tua pedra, tu mesmo
Tua Pátria, tu mesmo
Livre"

17 de outubro de 2014

1

O mal dito no corpo




A candidata passou mal após o debate de ontem na televisão: “queda de pressão”, segundo ela própria. Naturalmente poderia ter acontecido com o candidato. Há que se ter um mínimo de compadecimento, ou na falta deste, um pingo de compreensão: não deve ser mesmo nada fácil manter a saúde em níveis de pressão tão baixos e indecorosos. 

Por coincidência, comentávamos exatamente isso no almoço de ontem. Se a gente já fica transtornado com o que ouve e vê durante a campanha, imagine só como ficam os candidatos com o que ouvem, veem e dizem. Ou melhor, com o que não dizem. Afinal, não se pode dizer tudo, ainda mais quando o assunto é política. 

Já era hora de alguma coisa consistente fazer irrupção, tomar corpo, digamos, tomar o corpo. A psicanálise nos ensina que o que não passa pelo simbólico deixa marca no corpo, não importa o lado, seja à direita, à esquerda, ao centro, nos extremos. A pressão da candidata cai enquanto o tique do candidato aumenta. Inevitável, ninguém escapa: quando a simbolização falha,  algo dessa falha se inscreve - e sobretudo se diz, se mal-diz - no corpo: desconforto, mal-estar.

O que não é bem dito é mal dito no corpo, o que não é menos dizer bem: o fracasso da simbolização é o sucesso do sintoma.

E que fique claro: não estou falando do diabo. Estamos todos muito bem advertidos: na política o mal-dito sempre pode ser pior. Deus nos livre. Ou será que vamos todos para "o mal-dito que nos carregue"?