11 de fevereiro de 2016

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Olhos de Oyá



"A menina dos olhos de Oyá", Mangueira 2016

Houve um tempo em que eu sofria com a apuração dos desfiles das Escolas de Samba. Mas sofria mesmo, de urrar, chorar, dar soco na parede. Hoje ainda sofro, mas posso dizer de forma serena, como brisa da madrugada de verão.
Na verdade, o que me faz sofrer é o que faz sofrer todo ser humano: a obrigação de alojar o corpo vivo na forma do simbólico. Com as Escolas de Samba não é diferente: é um corpo vivo formado por milhares de pessoas, o qual tem que se submeter a nove quesitos. O resultado nem sempre é compatível com o que se viveu na avenida, há sempre um quê mortificador.
A Mangueira veio linda, desenvolta, luxuosa, isso é indiscutível. Mas não mais linda, desenvolta, luxuosa do que Imperatriz, Salgueiro, Beija-Flor, Portela, Unidos da Tijuca, que estão entre as campeãs. O samba também não vai entrar para a história - como provavelmente o da Imperatriz e Portela -, eu diria até que já foi esquecido. Mas a Mangueira chegou lá, com a Menina dos Olhos de Oyá. Bravo!
Mas se chegou, ouso dizer, é porque algo do simbólico, digamos assim, falhou. Pois, cumprindo à risca a exigência do quesito alegoria e adereço, a Mangueira “deveria” ter perdido ponto(s), o que não ocorreu: o penúltimo carro da verde e rosa passou apagado num trecho considerável da avenida. O comentarista Milton Cunha viu. Eu também. Pela extensão do “apagão”, não é possível que jurado nenhum não tenha se apercebido. Tenho para mim que fizeram olhos de Oyá. Felizmente, digamos. O que fez da Mangueira campeã, como todas as outras. De novo: Bravo!
Um dia volto a escrever sobre esse tema que me apaixona. Por ora, o que eu gostaria de dizer é o seguinte: é preciso rever e recriar a modalidade de avaliação das Escolas de Samba. Não sou de todo contra os quesitos - eles cumprem em parte sua função – como também não sou de todo a favor: o simbólico é sempre falho, não tem jeito. O que eu penso é que é preciso ter um olhar mais próximo do que vem a ser uma Escola de Samba. A começar por uma sugestão que faço: se é desfile das Escolas de SAMBA, que tal Oyá ter mais olhos para o SAMBA? 
Se assim fosse em 2016, arrisco um palpite: Imperatriz e Portela estariam léguas à frente da Menina dos Olhos de Oyá, fazendo mais jus ao corpo vivo na avenida. Mas a hora é de louvá-la: Eparrei Oyá!  

4 de fevereiro de 2016

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A puta e o homem que não é homem



Lembrei-me de um episódio. Era Carnaval: a multidão alegre, barulhenta, espremia-se de suor nas ruas, em plena luz do dia, fechando o trânsito. Um casal dentro de um carro atolado na massa humana – ele ao volante, ela ao lado – quis abrir passagem a todo custo: pé no acelerador, buzina, gestos nervosos por detrás do vidro fechado. Não saíam do lugar, muito pelo contrário: o carro parecia comprimir-se sob o embalo de corpos colados à sua lataria, alguns deitados no capô como num sofá. A moça, enfurecida, resolveu tomar uma atitude. Não sei como, conseguiu abrir a porta, saiu do carro. Se eu pudesse tê-la aconselhado, teria lhe dito que jamais fizesse o que fez: dedo apontado sabe Deus para quem, cara feia contra tudo e todos, despejava sua ira sobre a multidão, a qual, mais acesa do que nunca, retribuiu-lhe em coro, batendo as mãos no carro:

– Pi-ra-nha! Pi-ra-nha! Pi-ra-nha!

Não se mexe com Momo: carnaval é festa profana. A moça ficou ainda mais transtornada, fora de si, mas seu instinto de sobrevivência pareceu falar mais alto. Imediatamente enfiou-se no carro. Mas sua ira, continuava a despejar para o lado de fora, sempre com os vidros levantados: ela é irada, mas não é boba. Quanto mais ela se agitava e vociferava dentro – como num filme mudo – mais a multidão se eletrizava e multiplicava a chacota do lado de fora – risos, trejeitos, vaias, gargalhadas – fazendo do teto do carro um verdadeiro tamborim. Foi quando a moça resolveu abaixar apenas alguns centímetros do vidro para insultar mais diretamente a multidão. Coitada, o carro quase foi virado do avesso. E um segundo coro entoou em uníssono, no ritmo do tam tam tam na capota:

– Mal co-mi-da! Mal co-mi-da! Mal co-mi-da!

Dessa vez o tiro não pegou só nela, mas também no coitado do motorista que até então, consciente da ameaça que lhe pesava sobre a cabeça – as duas mãos ao volante como que agarrado a uma boia de salvação – adotara a mais prudente das atitudes: calma e silêncio. Se ela é piranha, o problema é dela, mas se é mal comida, a culpa é dele, quem mandou não ser homem suficiente? Castração, meu caro, a eterna ameaça...  

A multidão pode até não ter lido Freud, mas deu prova de que sabe, na mais justa das intuições, como depreciar uma mulher e um homem. 
A puta e o homem que não é homem.

A voz do povo é a voz de Freud.

Psicanálise no carnaval.

Claudio Pfeil

Diário De Analisando Paris