24 de outubro de 2015

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Salv-ação


Pedalando
Olho para o alto
O que vejo?



Corcovado
Cristo redentor

Reconfortante
Este outro
Que sela
Zela
Vela por nós
Braços abertos
A nos amparar

Senhor redentor!
Salva-nos da dor
Vida errante
Sentido ausente

Salvador
Salva-dor!

Mas sobre este outro redentor
Nuvens estão a pairar
E os mesmos braços no ar
Estão como que a nos soltar:
Criatura, nada posso por ti
Que não faças tu mesmo
Te vira!

Angústia
Desamparo
Vazio do céu
Des-espero

Bem-aventurados os que des-esperam
Pois seu reino é aqui mesmo na terra
Des-esperança e libertação
Des-esperar liberta a ação
Des-esperar salva a ação

Salv-ação
Salve-a-ação!

Salv-ação é lavoura e colheita
Invenção infinita dos homens

Claudio Pfeil 

22 de outubro de 2015

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Drama da piada de País

Operários, Tarsila do Amaral

Sinto medo, terrível. Meu medo, de fazer tremer na raiz meu amor pelo Brasil, é que toda essa lama na qual estamos afundados, CPIs que começam todos os dias à luz dos holofotes, manchetes de jornais, e vão-se-emendando-umas-nas-outras-umas-nas-outras-umas-nas-outras-umas-nas-outras-umas-nas-outras-umas-nas-outras-em-emendas-e-remendas-sem-fim, acabem virando, parafraseando o companheiro Delúbio Soares - aquele mesmo, da máfia dos vampiros, do mensalão e outras falcatruas mais – piada de salão, piada de (men)salão. Engraçado, não?

Seria até, e muito. Se a piada de (men)salão, a exemplo das CPIs, não se emendasse noutra: piada de País - esta sim, triste, muito triste, de dar um medo horrível, apagar de luzes, além do amargo (des)gosto do que poderia ter sido, e não foi. Sinto medo, terrível: drama da piada de País.

Mas daí penso em Darcy, Machado, Carlos, Manoel, Clarice, Casemiro, Cecília, Cora, Nise, Oscar, Joãozinho, Guimarães, Tarsila, Cândido, Burle, Sebastião, Tom, Betânia... – benditos sejam, meu Deus! Fazem-me esquecer as falas burras, pensamentos retrógrados, intenções espúrias daqueles que vivem a fazer-de-conta de que se atarefam com algo muito importante quando a única coisa que lhes importa realmente é vampirizar o País, manter-se no poder custe o que custar, fomentar e acobertar a bandidagem, sacanear a gente. Canalhas, sacanas, piadistas de salões, de Câmaras, de Palácios, de País.

Alegro-me então, não da piada canalha, mas do meu próprio drama: enquanto eu tiver medo e chorar, é porque acredito num país de verdade, e por ele quero viver com garra e amor. Se tremer na raiz for preciso, que seja por amor.

PS: Mal acabo de escrever o texto, leio a manchete de jornal: CPI da Petrobrás aprova relatório que livra políticos de investigação.

Claudio Pfeil

19 de outubro de 2015

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O tem a (não) ver com o inferno?



Uma colega psicanalista que não entende o que Psicanálise tem a ver com Política, e muito menos o que Política tem a ver com Psicanálise - acho que cada coisa tem que ser no seu lugar - vem me dizer que anda muito preocupada - mas muito mesmo, sabe? - com a maré baixa de pacientes em sua clínica - nunca esteve tão vazia assim, que coisa, né? Parece que estou vivendo um inferno astral, só que está demorando demais para passar, é angustiante, temo pelo meu consultório...

Cá com meus botões, fiquei com vontade de perguntar se ela conhecia "O Analfabeto Político" de Brecht. Juro, não foi por maldade, me atravessou como um raio. E foi o que fiz. 

Até agora não deu retorno. Deve estar consultando os astros, e com razão: do movimento das marés eles entendem como ninguém. O que um analfabeto tem a ver com isso, ainda mais com Política no meio? 

Afinal, o que um e outro, uns e outros, têm a (não) ver com o inferno?

Claudio Pfeil


16 de outubro de 2015

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Pa-só-cá



Mousse de paçoca

Rua do Rosário, coração do Rio de Janeiro - pausa para o café. Os docinhos chegaram à mesa: torta de limão com suspiro, mousse de cupuaçu com chocolate branco, mousse de paçoca. A francesa provou um a um. E aprovou: 

- Hmm...Délicieux... aussi bons qu’en France! 

Elogio lisonjeiro : deliciosos…Tão bons quanto na França ! Com direito a hmm? Mon Dieu! Todo mundo sabe que francês não gosta de colocar azeitona na empada de ninguém, muito menos fazer hmm à mesa dos outros. Está certo que o chef-patissier era francês, o garçon também - globalização oblige. Brasileiro garçon em Paris, sou o primeiro a dizer, não é nenhuma novidade, já um francês garçon no Rio, até bem pouco tempo era algo exotique. Quando é que a gente poderia imaginar? 

 A francesa, entre uma bocadinha e outra, silabava: cu-pu-a-çú... pa-ço-cá... cu-pu-a-çú... pa-ço-cá... E, de queixo caído, repetia a lisonja: 

- C’est vraiment délicieux... aussi bons qu’en France! E tome de hmm. humm...hmm...Bem, a gente se alegra, se orgulha todo, se sente o próprio poeta de minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Eu diria até que, no meio de tanto dissabor político e frutos podres a emporcalhar-nos a mesa e os sentidos diariamente, são alguns desses sabores da nossa terra que nos salvam. E naquele momento preciso do hmm, a paçoca me salvou. 

Désolé, madame. Tartelette au citron, vá lá, qualquer boulangerie na França tem, e das mais deliciosas do planeta. Já cupuaçú e paçocá, só cá. Seja sempre bem-vinda, madame: nossa terra tem sabores e virtudes insondáveis. E eles hão de nos curar. 

Claudio Pfeil

Mousse de cupuaçú

1 de outubro de 2015

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Taxista da ó(é)tica






Uma moça que foi ao Rock in Rio, tendo esquecido o celular no banheiro, conseguiu recuperá-lo: “Não sei quem foi, mas agradeço muito”, postou feliz da vida no Facebook, vibrando mais do que qualquer roqueiro.
Fez-me lembrar um episódio que ocorreu comigo há alguns anos quando fui pela primeira vez ao Espaço Cultural Tom Jobim, no coração do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Adentrar a natureza noturna sob o clarão da lua, por entre casas coloniais e árvores frondosas, já teria valido o programa. A peça era Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, mas o ponto alto da noite, que a fez valer para toda a vida, foi uma lição, ou melhor, uma ação concreta de ética. Isso mesmo: a ética ainda existe, não no dicionário ou livro de filosofia, mas na prática.
A peça já se encerrara, quase meia-noite. Um taxi parado à entrada do grande portão de ferro piscava os faróis, o mesmo que eu pegara em Copacabana - um aceno de mão, o taxista saiu do carro.
- O senhor deixou cair seus óculos no banco de trás –  dirigiu-se a mim estendendo-me o  Ray-Ban.
- Meus óculos? – surpreendi-me com o que não havia me dado conta até então batendo a palma da mão no bolso vazio da calça.
- Já tinha passado aqui faz uma hora mais ou menos, mas o espetáculo ainda não tinha acabado, daí resolvi dar mais uma corrida e voltei.
- Nossa, muito obrigado - apertei-lhe a mão admirado com o gesto - o senhor veio aqui, esperou, foi e voltou, perdeu todo esse tempo...poxa, muito obrigado...obrigado mesmo.
- Não foi nada, fiz minha obrigação - respondeu-me kantianamente - Pensei em deixar com os guardas do Jardim, mas achei melhor entregar os óculos na sua mão.
Fiquei entre contentamento e embaraço diante do taxista segurando os meus óculos que àquela altura, eram mais do que simples óculos, haviam sido transformados pela ótica do taxista: um homem que naquela noite de domingo dera voltas no relógio e na cidade para cumprir o que ele próprio considerara sua obrigação, obrigação que ele livremente se impusera. Livremente por quê? Porque nada o obrigava a isso, senão uma escolha sua. O taxista disse bem: a obrigação era dele, foi ele que se lhe a deu, escolheu. Nem mesmo o que poderia ter-lhe servido como desculpa ou impedimento  – horário de trabalho, contratempo das idas e vindas, espera prolongada, incerteza de me encontrar, “achado não é roubado” – o desobrigou, pelo contrário: todas essas possibilidades foram a condição mesma da sua obrigação. A obrigação moral - o que chamamos comumente de voz da consciência - anda de mãos dadas com a liberdade, escolha de uma ação dentre várias possíveis. Se não sou livre para escolher, não posso me sentir moralmente obrigado a nada. O filósofo Alain dizia de forma bem humorada e certeira que “a moral nunca é para o vizinho”: ela é a resposta à pergunta “o que eu devo fazer?” (e não “o que os outros devem fazer?”: isso é moralismo), a ação que eu escolho como sendo “minha obrigação” independentemente do olhar do outro - “sem que os deuses e os homens saibam” como dizia Platão - e de qualquer sanção ou recompensa.
Naturalmente, há sempre um pensamento malicioso à espreita: “Obrigação moral? Que nada! O taxista só fez isso esperando algo em troca, dinheiro, lógico." Sim, é sempre uma possibilidade, infelizmente das mais prováveis num País como o nosso onde o cinismo e a malandragem solaparam os ideais de virtude e dever em todos os níveis da sociedade: otário é quem não se dá bem. Em se tratando do taxista, não foi o caso. O desenrolar da história provou por si mesmo.
Voltei para casa com o taxista, é claro. Na hora de pagar, dei-lhe o dobro, triplo sei lá, do valor marcado no taxímetro.
- Não senhor, muito obrigado, esse dinheiro é seu, - devolveu a quantia a mais que lhe dera. Insisti.
- Não senhor, fiz o que era minha obrigação, esse dinheiro é seu – sorriu meneando a cabeça.
Por um instante senti-me orgulhoso desse homem, de mim, da humanidade, como se no meio de toda essa lama em que estamos afundados e à qual nos acostumamos como se fosse uma fatalidade, algo viçoso e inquebrantável permanecesse vivo, sempre pronto a surpreender e a dignificar o que chamamos de espírito. Despedimo-nos sem eu saber seu nome, quisera eu talvez saber mais sobre ele, um pouco de sua vida. Hoje, ao ler a postagem da moça do Rock in Rio - “Não sei quem foi, mas agradeço muito” – revejo a cena, eu e o homem face a face, eu e meus óculos, o homem e sua ótica. Bateu forte, feito urgência. Desejo, desejo de palavra:
“Não sei quem foi”, mas é de conduzir-se assim que carecemos todos na vida.
“Não sei quem foi”, mas é de condutores assim que urge nosso País.
“Não sei quem foi”, mas é sob essa ótica que precisamos enxergar as coisas mais corriqueiras do dia a dia e orientar nossas ações.
“Não sei quem foi” mas é desse gesto que faço-me esperança - não na harmonia utópica entre humanos - mas na compatibilidade cordial de todas as singularidades existentes no universo.
“Não sei quem foi”, mas só tem um nome: ética.
E ética não tem preço, unicamente apreço: apreço à ação que se obriga a cumprir em respeito a si e ao outro.
A humanidade está perdida, “procura-se”: o taxista da ó(é)tica e o benfeitor anônimo do Rock in Rio dão pistas de onde e como reencontrá-la. A força do que se perdeu reside na certeza, não de se achar, mas de que se está buscando. 

Claudio Pfeil