2 de outubro de 2016

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O escândalo de todos nós

Marcos Caruso em “O escândalo Philippe Dussaert”

O que faz de um artista, artista? O que faz da criação, arte? O que faz de um objeto, obra de arte? 
 
Esse é o motor, por assim dizer, de “O escândalo Philippe Dussaert”, no palco da Maison de France, no Rio de Janeiro. Por si só, já valeria a ida ao teatro. Pois essas indagações constituem todo um campo de pesquisa filosófico - a que se dá o nome de Estética -, no qual, filósofos, críticos ou amadores de arte, buscam conceituar o que justamente transcende, em parte ou totalmente, a qualquer conceito. Como diz Kant, o belo, é o que agrada universalmente sem conceito”. Sem conceito. Um escândalo à razão.

Escândalo, do latim scandalum, a etimologia diz bem: é o que faz a gente tropeçar, cair. Principalmente a partir do dia em que Marcel Duchamp transformou um urinol em obra de arte: “A fonte”, 1917. De lá para cá, a arte se desnormatizou, explodiu regras, savoir-faire, temas, suportes: a cada dia surgem novas formas de expressão, expressão do nosso tempo, e por isso chamada “arte contemporânea”. Toda expressão do tempo é arte? Mas o que é Arte? Perturba, incomoda, embaraça. O que não impede nem exaure o escândalo que a arte É e CAUSA, ao contrário: o reativa como uma lufada de ar-te vivificante. Porquanto, ainda que incapazes de conceituá-la, não deixamos de indagar até hoje o urinol-fonte: isso é Arte? 
 
Dessa forma, tropeçamos em “O escândalo Philippe Dussaert”, texto de Jacques Mougenot, que na interpretação de Marcos Caruso, sustenta densidade e humor, numa dosagem e timing perfeitos. Comecemos com o seguinte: alguém que faz cópias perfeitas de Da Vinci, Manet, Cézanne, Vermeer, Boucher, Delacroix,Van Eyck, é artista? Um falsário? E se, todavia, esse alguém, ao copiar os mestres, apagasse quaisquer personagens - homens, mulheres, animais – e retratasse fielmente o que resta na obra sem eles? Imaginemos La Gioconda, sem a Gioconda: pois então, foi o que fez Philippe Dussaert. Volonté d'effacement – vontade de apagar palavras de Madame D'Argenson, renomada galerista e crítica de arte, que o promoveu e defendeu com o mesmo ardor com que se tornou amiga e mecena daquele que considerava um “Hamlet doente e depressivo”.
 
Falsário, em definitivo, não se trata de um, pois o effacement desmente toda intenção de autenticidade; mais ainda: dá a ver algo a mais que o mestre não deu – o fundo do motivo principal. Ou seja, ao apagar o que em geral dá nome à obra, Dussaert dá a ver uma dimensão outra do mesmo. Copista criador? Seja como for, de effacement em effacement, o “copista” radicaliza o gesto, suprimindo tudo o que há de concreto em sua obra. Resta algo? O vazio. Eis o nihilismo exposto numa galeria onde não há outra coisa senão o vazio, este elevado à obra de arte, o criador à fortuna e fama. Ex nihilo. Que escândalo! 
 
Será verdade? Impostura? Arte de vanguarda? Quais os critérios, limites, da arte contemporânea? Quem haverá de decidir? Críticos de arte, colecionadores, museus famosos, marchands, cotação no mercado, ministério da Cultura? Só assistindo a “O escândalo Philippe Dussaert”, não para saber, mas indagar. Indagar a experiência artística, suas escabrosidades e conceitualizações, e encarar a fala desafiante do autor, mas também do ator, ambos a filosofar divertindo e a divertir filosofando: “É com palavras que nada se torna uma coisa”, alfineta Caruso. O que está em cena é uma reflexão sobre o estatuto estético-ontológico da arte contemporânea.
 
Mas o escândalo não para aí. Aliás, não para em lugar nenhum: o próprio do filosofar é não parar. Por isso falei de motor: o escândalo nos propulsa. Para onde? Se é verdade que a filosofia nos leva à arte, filosofia e arte nos propulsam para a psicanálise. De effacement em effacement, “O escândalo Philippe Dussaert” nos levam a refletir sobre o escândalo de cada um de nós: nosso effacement, nossa alienação como sujeito. Bem poderia chamar-se “O escândalo Jacques Lacan”. Por quê?

Porque para Lacan, o sujeito não é somente o ser enquanto ele fala, mas sim enquanto ele é fabricado pela palavra. Volto à fala de Jacques Mougenot: “É com palavras que nada se torna uma coisa”. Mutatis mutandis, é exatamente isso que o neologismo lacaniano parlêtre expressa. Antes de sermos capazes de falar, já falam de nós, somos falados pelo Outro. Ou seja, muito antes de existirmos no sentido biológico, somos no discurso dos outros. Parodiando: é com palavras que somos no Outro. Outro, com “O” maiúsculo - a linguagem é a forma do outro por excelência. O que significa dizer que o sujeito depende do Outro para ser, ou, se preferir, que o ser do sujeito é uma função da palavra, do discurso. Portanto, mais do que sujeitos de ação, somos sujeitos agidos, co-agidos pelo discurso que vem do Outro. 
 
Daí nossa alienação. Alienação vem do latim alienus, que significa outro. Nós nos alienamos na medida em que somos subjugados pelo discurso do outro, fabricados por ele. Passamos nossa vida a falar e a pensar nas palavras que vêm de fora. Nesse sentido, somos estrangeiros a nós mesmos. Esse é o nosso escândalo, escândalo de cada um: é o que faz a gente tropeçar, cair. Somos a tela do mestre com o personagem apagado, effacé. Pois, na medida em que somos tomados pelo discurso do Outro, algo vivo de nós não consegue ser capturado, simbolizado, conceitualizado, há uma perda, uma queda, um effacement. Isso ocorre no plano individual, na absoluta singularidade de cada um. 
 
Porém, se abrangermos nosso olhar, do plano subjetivo ao intersubjetivo, do individual ao social, esse effacement é ainda mais visível. Isso mesmo: visível. Na contemporaneidade, tudo, absolutamente tudo, tem que passar pelo crivo da imagem, ser desvelado, desnudado. É o ideal de um sujeito desprovido de interioridade, sem mistério, sem segredo, um sujeito de quem os mais diferentes discursos aspiram a dar conta. Todo mundo – leia-se: o Outro sob múltiplas máscaras contemporâneas – detém a verdade sobre nós, sabe o que somos e do que necessitamos. Somos enredados no discurso dos políticos, economistas, religiosos, publicitários, cientistas, industriais, médicos, farmacêuticos, psiquiatras, sexólogos, dos meios de comunicação, internet. Somos parasitados por eles.

De que maneira? Pelo consumo e a obrigação de completude. Nenhuma falta, nenhuma tristeza, nenhuma ferida são admitidas. Tudo em nós deve ser sanado com o consumo: a gente tem que consumir para ser feliz. Todos esses discursos contemporâneos acabam por provocar um effacement dos personagens que somos, tornando cada um deles, como dizia Madame D'Argenson, um “Hamlet doente e depressivo”. 
 
A pergunta que a peça enseja, a formulo nesses termos: será que não adoecemos ou deprimimos justamente por nunca atingir a completude que os discursos-parasitas insistem em nos vender? Não seria essa injunção por demais visível – consumir e gozar sem limites - invadindo todos os espaços de nossa tela de vida, o que constitui nosso escândalo, faz a gente tropeçar, cair? Pois, se nenhuma conceitualização é capaz de definir a Arte, nenhum discurso é capaz de expressar a verdade do sujeito. O que somos no Outro, é uma espécie de mentira de nós mesmos. 
 
Os discursos que nos parasitam funcionam, na tela social, como uma volonté d'effacement. Mais grave do que o escândalo de alienarmo-nos a eles, é permanecermos enredados nessa mentira por toda vida afora. A mentira é inadmissível, diz Caruso: o único lugar onde a mentira é justificada, é o teatro. Portanto, o escândalo que nos faz tropeçar, é o mesmo que nos convida a levantar e a prosseguir a caminhada, de forma mais avisada, menos alienante.
 
E aproveito a hora para levantar, e bater palma de pé, para Marcos Caruso - em atuação solo magistral! -, Fernando Philbert - direção impecável – Natalia Lana, cuja cenografia minimalista e funcional, é surpreendente.
O escândalo Philippe Dussaert”: escândalo de todos nós.

MAISON DE FRANCE, Rio de Janeiro, de quinta a domingo, até 18 de dezembro




30 de setembro de 2016

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Contra os assassinos da liberdade



Política é aquilo a que nos destinamos por nossa própria condição enquanto seres precários, afetados e dependentes uns dos outros. Como diz Aristóteles “o homem é um ser político e está em sua natureza viver em sociedade”. Portanto, se a Política tem como fundamento a precariedade humana, a ética psicanalítica tem paralelamente uma ética política: o psicanalista tem como dever combater qualquer discurso dogmático que recuse o direito à singularidade, subjetividade, particularidade. Isso supõe um espaço de liberdade, de democracia, onde valores que preservem a singularidade de cada um sejam afirmados acima de qualquer coisa, um ESTADO LAICO FUNDAMENTALMENTE. 
 
A cidade do Rio de Janeiro está a um passo de eleger, segundo pesquisas, um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo CRIVELLA, que aliás, soube hoje, é PRIMO de Edir Macedo, que dispensa apresentações. Não me cabe, nem como pessoa, muito menos como filósofo e psicanalista, discutir credo ou opções religiosas: ser adepto do criacionismo, como no caso de Crivella, é inteiramente de foro íntimo de cada um. Em política, todavia, trata-se não de foro íntimo, pelo contrário, trata-se sim, de FORO PÚBLICO. 
 
De minha parte, penso ser INADMISSÍVEL, por tudo que é notório no tocante aos negócios espúrios e práticas indecentes ligadas a essa EMPRESA - porque é disso que se trata: uma empresa pseudoreligiosa que manipula a fé dos incautos, metendo a fé deles no saco e a mão no dinheiro deles -, que tenhamos como representante da pólis, seja o Rio de Janeiro ou qualquer outra, um avatar do fundamentalismo religioso, altamente conservador (leia-se: que não aceita o que é diferente dele), racista, homofóbico e o que é pior, sem escrúpulos. Ademais, regurgita ardil e sarcasmo bem ao estilo oratório dos pastores da Universal, procurando sempre “dourar a pílula”. A título de exemplo, Crivella fez aliança com o clã de Anthony Garotinho, ex-governador do Rio, já condenado por formação de quadrilha, pretextando que “a política precisa de alianças. Ninguém pode ganhar uma eleição sozinho”. Com isso, conseguiu mais que dobrar seu tempo em televisão. Apenas um detalhe. O grosso da aliança a gente não sabe, ou melhor, sabe. 
 
A Filosofia e a Psicanálise me mostraram na carne que cada um deve ter o direito de inventar o seu modo de ser e “não ceder do seu desejo”, como diz Lacan. Isso implica responsabilizar-se. Responsabilizar-se é não apenas reconhecer o que se diz e assumir o que não se conhece (o desejo), mas também assumir o que se diz e o que se faz diante do OUTRO na pólis. Ou seja, no MEU modo de ser eu ME implico e implico o OUTRO. Bem diz o ditado: “a liberdade de cada um termina quando começa a do outro”. Um professor de Filosofia da Sorbonne, Robert Misrahi, dizia: "pas de liberté aux assassins de la liberté". Ele está certíssimo. Não se deve dar voz a alguém cuja palavra aniquila a liberdade alheia. MUITO MENOS VOTO. 
 
Estamos a poucos dias do primeiro turno das eleições. Quem acompanha meus escritos sabe que não faço panfletagem partidária, tampouco me disponho a convencer nem a demover ninguém. Esforço-me sim, em interpretar com meus olhos o mundo à minha volta, o que requer não somente pensar uma ideia, mas aprofundar-me no próprio terreno onde a ideia se enraíza, e a partir daí, agir. Esse é o esforço do filosofar no sentido da praxis. Pois bem. 
 
Há uma constatação, eu diria até, uma imposição de ordem prática: o candidato Crivella, disparado nas pesquisas, JÁ ESTÁ no segundo turno. Muitos hão de se alegrar com isso, eu não. Sinto-me num impasse. O que fazer diante disso? Sentar e chorar não resolve nada. Ficar martelando nas redes sociais as falcatruas do candidato também não: quem já o escolheu está exercendo o direito que é seu, por motivos que lhe dizem respeito, e nada posso contra isso, senão lembrar o dizer de uma amiga, que publiquei esses dias: "A pessoa põe sabonete na boca; se tirar, ela reclama". 
 
A questão que eu coloco a mim mesmo, e que cada um que não quer Crivella como prefeito do Rio - por entender que a política é fundamentalmente um espaço LAICO, em DEFESA DA SINGULARIDADE de cada um - deve, penso eu, se colocar neste momento é: qual dos candidatos tem MAIS E MELHORES condições intelectuais, emocionais e morais para, num possível segundo turno, combater, como diz meu professor, um “assassino da liberdade”?

Minha resposta é: Marcelo FREIXO. Cada um pense e responda como entender.


23 de setembro de 2016

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Monstruoso eufemismo

O Globo, 23/09/2016
Hoje cedo, deparei-me com duas manchetes de jornal - O Globo, EXTRA - acerca da reforma (nem ouso chamá-la educacional) proposta pelo governo. Ambas ressaltam em letras garrafais o aumento da carga diária de aula para 7 horas. Um leitor desavisado poderia até achar que se trata de um avanço. Mas não. As duas manchetes são, em verdade, insidiosas.

O cerne dessa "reforma", o que está REALMENTE EM QUESTÃO - nada mais nada menos - é uma clivagem, clivagem entre DOIS TIPOS de disciplinas: as que o governo julga ESSENCIAIS, e as que julga SUPÉRFLUAS. Como o governo não tem coragem de assumir, com as mesmas letras garrafais da manchete, sua lógica de pensar – afinal, dizer que arte, educação física, filosofia e sociologia são supérfluos, é o mesmo que mandar Picasso, Bolt, Sartre, Marx, Durkheim, Auguste-Comte, Weber e outros, para as cucuias - escolheu-se um nome que sugere autonomia, livre-arbítrio, liberdade de escolha. Tais disciplinas sãos consideradas a partir de então “optativas”. Louvas à liberdade de escol(h)a! Bonito, não?

Trata-se na verdade de um monstruoso eufemismo, acobertado pelo carro-chefe de se aumentar o tempo de aula. Qualquer pessoa mais ou menos sensata é a favor do tempo integral, também sou. Falo por experiência própria: cursei quase todo o primeiro e segundo graus – hoje, chamados respectivamente, ensino fundamental e médio - em horário integral. Todavia, a proposta alardada pelas manchetes de jornal é insidiosa. A questão não é meramente QUANTITATIVA, mas essencialmente QUALITATIVA. Portanto, antes de qualquer projeto de reforma educacional, há que se promover um amplo debate nacional, notadamente com a participação de pensadores e educadores de todas as áreas, para se discutir o que, a meu ver, é a GRANDE QUESTÃO: o que é educação, e a partir daí, que modelo educacional queremos para o País? Não é uma canetada governamental aumentando o tempo escolar que vai fazer do Brasil uma pátria verdadeiramente educadora.

Não nos deixemos enganar. Ninguém é tão tolo a ponto de achar que no estádio geral e atual da nossa sociedade, alguma escola, num lampejo iluminista, fará a benesse – pois se tratará disso - de propor aos educandos aquilo que a lei estipula como supérfluo, perdão, “opcional”. É a lei, ponto final. Mutatis mutandis, é como cachê artístico: se for “opcional” - como algumas casas de espetáculo estipulam para poderem faturar mais nos comes e bebes – muita gente, até mesmo os que se agradam do show, não vêm motivo nenhum em pagar, afinal de contas, a opção é de cada um. E mais: acham que estão fazendo um favor de estarem ali, assistindo ao show, e vão-se embora felizes da vida, na maior paz, cantarolando o que acabaram de ouvir. O artista que se dane. Quem é cantor ou músico sabe disso. Ele que vá fazer algo realmente necessário para ganhar a vida. Arte é mesmo supérfluo, não é mesmo?

Digo e repito. Tornar essas disciplinas "optativas" é um monstruoso eufemismo, o mesmo que dizimá-las da rotina estudantil. E o que é pior: sob a alcunha cínica da “liberdade de escol(h)a”. Em suma, essa “reforma” nada mais é do que uma formatação, uma colocação do espírito humano numa forma pré-definida, mediante uma lógica de funcionamento exclusiva, fruto da visão tecnicista do mundo, da própria vida. 

Claudio Pfeil 
  
EXTRA, 23/09/2016


19 de setembro de 2016

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Despedida e renascer

 
Claudio Pfeil, Copacabana, Maratona RIO 2016

No último dia de Paralimpíada, o Rio se despede do jeito que é o seu: colorido, alegre, ensolarado. Praia cheia, banho de mar gelado, biscoito GLOBO, mate Leão, caipirinha, samba, festa na areia e no calçadão.
A cidade nunca esteve tão confiante e prosa de si mesma: depois da Olimpíada, sucesso absoluto que encantou e surpreendeu o País e o mundo, a Paralimpíada surpreendeu ainda mais, e em muitos aspectos, superou a antecessora. 
No meu tempo de colégio, havia uma expressão para designar aquele que não era bom de bola, e que portanto, não fazia muito diferença se estivesse tanto num time como no outro: "café-com-leite". Era o meu caso.
Não sei se ainda se usa a expressão, como também não faço ideia do meu passe futebolístico atual: faz tempo que não chuto uma bola. O que eu sei é que “café-com-leite” não me deixou indiferente ao esporte, pelo contrário: gosto de correr, malhar, nadar, fazer trilhas. E, diga-se de passagem, adoro café com leite. Lacan nos chama a atenção para a preponderância dos significantes em nossa vida, mas a gente nunca sabe o peso exato que eles têm. No caso em questão, “ser café-com-leite” talvez tenha tido para mim, ao invés do sabor impeditivo, um sabor desportivo. O divã, quem sabe, possa confirmar esse chute. 
Pois bem. Se relembro essa expressão, é pela seguinte razão: até a Rio 2016, Paralimpíada para mim era "café-com-leite". Não fazia diferença, passava em branco. Olimpíada sim, era algo notável, coisa de gente excepcionalmente forte e capaz, atletas perfeitos que disputavam quais dentre eles eram os MAIS. O MAIS-MAIS-MAIS era Ouro, o MAIS-MAIS, prata, e o MAIS, bronze. A todos os outros, considerados a sobra do MAIS, passar bem: daqui a 4 anos tem disputa de novo.
Mas entre uma Olimpíada e outra, eu ouvia falar de Paraolimpíada. Se escrevia com “o”. Confesso que não tinha a mínima ideia do que realmente era. Aliás, tinha sim. A gente sempre tem uma ideia quando diz não ter a mínima ideia das coisas: isso se chama preconceito. Assim, a ideia que eu tinha quando eu dizia que “não tinha a mínima ideia” é esta: um evento para quem não é MAIS, nem sobra do MAIS, mas sim, para quem é MENOS. E por que se interessar pelo MENOS quando se tem o MAIS? 
Para mim, isso remetia a outro nome: caridade. Isso mesmo: caridade. Na minha cegueira irrefletida - “na ideia que eu tinha quando dizia não ter a mínima ideia” - Paralimpíada era uma espécie de evento caritativo. “Ah, os coitados, têm algum problema, disfunção, falta membro, visão: não são normais. Se quem é normal pode ser café-com-leite como eu, imagina quem é fora de norma. Que tal praticar uma boa ação para os ultra-cafés-com-leite, organizando uma brincadeira entre eles, à margem dos atletas olímpicos, "em paralelo", uma competição paraolímpica?". Quanta ignorância. 
E hipocrisia: a Paralimpíada aparecia ante meus olhos como uma generosa concessão da normalidade para fora de si mesma. Coitados, ultra-cafés-com-leite merecem brincar também, não é mesmo? Faz bem à alma – deles, e sobretudo, nossa. Claro, tudo isso era irrefletido, mas não menos uma ideia que eu tinha quando eu pensava não ter a mínima ideia de Paralimpíada. Até chegar o Paralímpico Rio 2016 e ser corporalmente atravessado por ele.
Hoje foi a vez da Maratona, última competição, na orla de Copacabana: 42 quilômetros. Mais uma vez transcendi, nos limites do meu próprio corpo, a fronteira entre corpos considerados "normais" e fora da norma. Uma senhora que assistia a meu lado, ao ver os atletas sem perna correndo, fez cara de sofrida e virou-se para mim balançando a cabeça: "ah, meu Deus, coitados, né?". Já eu estava pensando que com minhas duas pernas não consigo fazer o que eles fazem, eles fazem MAIS do que eu. Não são café-com-leite: café-com-leite sou eu. Foi o que respondi a ela. Não sei se entendeu. Importa é que eu entendi.
Quem com menos faz mais, é menos ou mais do que quem com mais faz menos? Essa é questão que, por assim dizer, resume toda a avalanche de sensações que experimentei durante o Paralímpico Rio 2016.
Hoje o Rio se despede da Paralimpíada. Após o encerramento no Maracanã, os atletas irão embora, o público também. E eu? Eu prossigo renascido a mim mesmo, nem MAIS nem MENOS: uma movência corporal sem nome que hoje arde ao sol de Copacabana, e amanhã, quem sabe, ao sol do país do sol nascente.

Claudio Pfeil 

Claudio Pfeil, Copacabana, Maratona RIO 2016
 

14 de setembro de 2016

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Engenhos (im)possíveis

Claudio Pfeil, "Prótese de prata", Engenhão, Rio de Janeiro

Olhei para o alto, nuvens chumbo em movimento. A curvatura metálica do Engenhão com seus holofotes acesos formava uma imensa prótese prateada reluzindo no céu. Senti algo desestabilizador, misto de equilíbrio e desordem, vertigem e contentamento, uma espécie de impulsão inexprimível que me fazia experimentar a mim mesmo naquele exato instante, como diferente daquele que entrara no estádio poucas horas atrás. O que se passava comigo? Difícil palavrar o que passa, mas tudo que passa enseja a palavra, ainda que incompleta e precariamente dita. 
Só sei que à vista daquela imensa prótese prateada no céu, experimentei-me eu mesmo como mais e menos, eficiente e deficiente, capaz e incapaz. Um fluxo, um universo mutante e instável como as nuvens chumbo se fundindo e convertendo umas nas outras. Eu era a própria eficiência nos limites da sua deficiência, a capacidade limitada ante a deficiência capaz. Isso me bastou para que eu transcendesse, nos limites do meu próprio corpo, a fronteira entre corpos considerados "normais" e "a-normais", fora da norma. 
Não adianta saber, é preciso viver. Foi preciso vir aqui no Engenhão para viver o que eu já sabia, mas que por não ter vivido, não tinha corpo. No dia dia, geralmente vemos pessoas deficientes como menos capazes, alguém que faz menos do que a gente faz. São pessoas marcadas pelo déficit. Na Paralimpíada, esse conceito é invertido. As pessoas que costumamos ver como deficitárias fazem aquilo que nós não somos capazes de fazer, elas fazem mais do que nós. Nosso olhar se converte do menos ao mais, do deficiente ao excedente, do impotente ao excelente, do déficit ao superavit. Os deficientes somos nós. 
Foi preciso vir uma, duas, e virei tantas vezes for possível para viver esse meu “novo corpo”. Quando a gente se sente MAIS ou MENOS já não está tão somente no registro do corpo, mas do simbólico. A prótese é a marca da deficiência como a linguagem é a marca da falta. Assistir a esses corpos olímpicos com suas próteses e deficiências - corpos que lançam, saltam, correm, transpiram, competem, festejam, saltitam, choram -, corpos que fazem justamente aquilo que meu corpo NÃO É CAPAZ DE FAZER, fez-me descobrir como um corpo deficiente, corpo significantizado. 
É isso: no Engenhão eu descobri um corpo, um corpo deficiente, faltante, e por isso mesmo, um corpo capaz de criar, de produzir movimentos com arte, talento, velocidade, eficiência, engenhosidade. Engenhão, não poderia ter apelido mais apropriado. Foi aqui que eu me dei o privilégio de engenhar uma prótese alavancadora, alavancadora de desejo, de me projetar rumo a meus engenhos impossíveis, e quem sabe até concretizá-los.

16 de julho de 2016

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La Marseillaise


CLAUDIO PFEIL no RevoluShow 14 Juillet 
Piano Cleo Boechat
Vive la Liberté - Vive la France
Zacks Botafogo, Rio de Janeiro

"Aux roses citoyens
Formez vos compagnons
Dansons dansons
Qu'un vin d'amour
Abreuve nos sillons..."

17 de junho de 2016

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Ferozes depravados


Killing Fields, Camboja


Um eleito do Front National, partido de extrema direita francês, comparou a homossexualidade à zoofilia. Não vou entrar no mérito da comparação: o deputado deve lá ter suas motivações íntimas e doutoramento zoofílico. 
Todavia, sob o prisma filosófico-analítico, extraio dessa relação no mínimo inusitada duas constatações que saltam a meus olhos.
Primeiro: quanto mais irreflexivo - leia-se idiota - se é, mais se pretende meter o bedelho na vida alheia.
Segundo: quanto menos em dia se está com o própria sexualidade - leia-se "gozo não/mal tratado" - mais se é levado a denegrir as formas do gozo alheio a fim de tutelá-las com etiquetas moralistas.
Idiotice e gozo não tratado constituem por si só um perigo. Quando combinados, o que frequentemente acontece, tornam-se um terrível veneno. Há que se ter sempre muito cuidado: quem dele se alimenta, quer porque quer fazê-lo provar a todos. Custe o que custar.
O preço, todos nós sabemos qual é: que tal jogar mais um animal depravado do alto do prédio? Que tal entrar numa boate gay e meter bala viadagem? Bora enfiar porrada? 
É uma questão de poder: quem pode e quem não pode. E o que é pior: cada vez mais gente batendo palma. Estes sim, ferozes depravados.

Claudio Pfeil