31 de maio de 2014

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Un homme défenestré

"– O que aconteceu?
– Um homem se jogou da janela lá de cima, uns trinta anos – respondeu como um apresentador de telejornal, erguendo a cabeça em direção ao último andar.
Pensei: um homem de trinta anos se jogou da janela enquanto eu estava no consultório. Senti a angústia desse homem, a minha angústia, a angústia humana. Uns se acomodam, outros procuram um analista, outros se jogam pela janela. O que faz um homem se jogar do sexto andar? Que insuportável da vida pode ser pior do que uma queda insuportável? Lembrei-me do homem do quadro olhando os arranha-céus de New York. Imaginei o homem morto no chão, minutos atrás olhando os telhados de ardósia de Paris. E o consultório de minha analista logo ali, dobrando a esquina, do outro lado da rua, atrás da porta pesada.
Eu e o meu drama.
Terá o homem escapado ao seu?"

Diário de um analisando em Paris, p.47

29 de maio de 2014

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Fantasma fundamental

Glossário do analisando

"Fantasma (ou fantasia) fundamental – não é sinônimo de fantasma ou fantasia sexual; núcleo imaginário em torno do qual o sujeito se dá uma interpretação; Freud o chama de fundamental porque fundamenta o sujeito; “solução” absolutamente singular que cada um se dá para o enigma: quem sou? (resposta que não se pode obter do Outro); roteiro pessoal do qual somos autor e que nos permite ordenar nossa relação com a falta do objeto (objeto a); ponto fixo que não muda: nas diferentes situações da vida, tentamos colocar em cena o mesmo roteiro sem saber que fomos nós que o escrevemos; o que se busca localizar numa análise: se o roteiro é impossível de ser mudado, é no entanto possível vislumbrar o que está em jogo nele, possibilitando-nos escrever outras estórias."

Diário de um analisando em Paris, p. 184
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Mordida no desconhecido

"A análise lacaniana não é apenas um processo de interpretação, mas também de produção de uma língua. Numa análise, nunca se chega a um saber acerca do desejo, mas é possível, passo a passo, ter uma abordagem cada vez mais fina do que Lacan chama de Real do desejo. Há algo infinito na psicanálise, cada passo é como dar uma mordida no desconhecido, no nonsense, e cada passo é um retorno ao divã."

Diário de um analisando em Paris, p. 82

28 de maio de 2014

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Tum tum tum




Hoje falei para ela de música eletrônica. Tive um insight depois de ter lhe dito outro dia que adoro dançar e namorar na The Week: a análise é como música eletrônica, não é para ser compreendida, é para ser vivida. 

Antes eu detestava música eletrônica, pois me colocava na posição de quem escuta. Achava ela feia, barulhenta, agressiva ao ouvido, tum tum tum. Parecia haver algo errado nela. Mas o problema não estava nela e sim em mim, ou melhor, em minha forma de lidar com ela. É que música eletrônica não é para ser ouvida, é para ser dançada, encarnada. Ela não veicula nenhum sentido, não quer dizer absolutamente nada, é matéria bruta, nonsense. É pura pulsação, como o coração batendo: tum tum tum. 

Das artes, a música é tida como a mais espiritual. Pode ser. Mas se assim é, digo que a música eletrônica não é espiritual, é corporal. Por isso ela é profundamente erótica, é como fazer amor. Não tem explicação, apenas o corpo ali, tum tum tum. 

Uma análise é um corpo ali fazendo tum tum tum. Sem explicação. Como a música eletrônica, como fazer amor: vive-se, não se pensa.

25 de maio de 2014

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Mais vale ser poeta

"O desejo constitui uma trama no sentido quase têxtil da palavra, mas uma trama que tem um furo, daí a impossibilidade de se dizer totalmente o desejo. Não é possível formular o desejo, mas o mecanismo é linguístico: o inconsciente, diz Lacan, é estruturado como uma linguagem. A psicanálise é um trabalho de abordagem desse impossível através da metáfora e da metonímia: ela visa o inominável. Numa análise mais vale ser poeta do que intelectual."

Diário de um analisando em Paris, p. 84

20 de maio de 2014

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Gabi-blá-blá-blá



Eu não sei, sinceramente, de onde tiram que certas pessoas, sobretudo algumas que trabalham na televisão, são inteligentes, mega-inteligentes, mega-hiper-inteligentes. Tenho um palpite: tal opinião vem do fato de tais pessoas serem verborrágicas, não deixarem o outro falar (para quê, se elas sabem tudo?) e gesticularem muito como se seu saber fosse tão grande que transbordasse os limites de sua própria epiderme. 

Isso parece ser o caso - digo bem parece ser, pois não a conheço para além da superficialidade da tela da televisão - da mega-hiper-inteligente apresentadora/entrevistadora/jornalista/ atriz/cantora (algo mais?) Marília Gabriela. No seu programa de TV “Gabi Quase Proibida”, de 16/10/2013, cujo vídeo assisti há poucos dias (https://www.youtube.com/watch?v=y0s5IVX16kY), em  entrevista com o cartunista Laerte Coutinho, que pratica o crossdress - ele veste-se de mulher - lá pelas tantas, Marília Gabriela resolveu filosofar:  

- Me parece que para você a sexualidade é muito mais uma questão filosófica do que qualquer outra coisa... 

Laerte arregalou os olhos numa cara de paisagem: 

- Ah é? - riu-se voltando o quanto pôde à cara de paisagem - não sei se eu entendi bem o que é filosófica...- replicou o crossdresser, habituado no seu dia-a-dia a inverter as posições, passando de entrevistado a entrevistador. 

Surpreendida com tal inversão - crossdresser inteligente não é para qualquer um -  a mega-hiper-inteligente entrevistadora viu-se na posição de dever explicar sua própria fórmula, digamos, filosófica. Foi então que, gesticulando nos quatro cantos do mundo e sacolejando num gaguejo e outro, descarrilou baboseira abaixo: 

- Filosófica é quando é uma questão para ser resolvida num plano empírico, é uma questão de compreender porque estabeleceu-se que na vida os nomes são dados e as atitudes são apropriadas, as pessoas se apropriam de situações com uma nomenclatura toda própria...eu acho que foi aí que aconteceu a sua história... 

Laerte, bom de inversão, invenção e re-invenção, manteve-se no salto e pendurou o blá blá blá da apresentadora no cabide em tom didático: 

- Não sei se é filosófico ou se é uma avaliação sociológica, política, eu não sei....    

É isso aí. 
Faltou dizer a Marília Gabriela que a Filosofia nasceu justamente porque no plano empírico há questões que não podem ser - e não são - resolvidas. Ou, em outras palavras, é da insuficiência do empírico que a filosofia extrai o seu vigor. Como na arte. André Gide escreveu : « A arte começa onde viver não basta para exprimir a vida ». 

Mas pera lá, vamos devagar: será que a entrevistadora sabe o que é empírico?


13 de maio de 2014

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“Deitar-se” para Lacan

"Hoje li algo interessantíssimo na biblioteca. A palavra clínica vem do grego κλίνω, klinô (inclinar, deitar), de klinos que significa cama. Lacan fala da importância do deitar-se numa análise: “Portanto, há que clinicar. Isto é, deitar-se. A clínica está sempre ligada ao leito – vai se ver alguém deitado. E não se encontrou nada melhor do que fazer deitarem-se aqueles que se oferecem à Psicanálise na esperança de se obter um benefício que, deve-se dizer, não está, de antemão, garantido. É certo que o homem não pensa do mesmo modo deitado ou de pé, ainda que só fosse pelo fato de que em posição deitada faz muitas coisas, em particular o amor, e o amor o conduz a todo tipo de declarações.”

Diário de um analisando em Paris, p. 125

10 de maio de 2014