29 de novembro de 2015

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Sem cabeça e assinatura



As exposições temporárias do Louvre são sempre espantosas. Mas confesso que essa, já pelo cartaz que vi dentro do metrô, me arrebatou: Uma breve história do futuro. História do futuro? Pareceu-me um absurdo mais absurdo do que o que estamos vivendo. Na mesma hora pensei: como historicizar o amanhã se o próprio presente parece suspenso por um fio?
A exposição é espetacular: uma espécie de viagem no tempo e no espaço onde obras "clássicas" e contemporâneas dialogam acerca do futuro do planeta e da humanidade, a partir de um olhar sobre o passado. É uma espécie de projeto de futuro com um olho no passado, ou, se se preferir, uma projeção no passado de olho no futuro. Passado e futuro numa relação de espelhamento. Um pouco como a letra de Solar, na voz de Gal Costa:

Hoje escuro (...)
E o mundo novo será mais claro
Mas é no velho que eu procuro
O jeito mais sábio de usar
(...)
E o sonho é belo
Pois tudo ainda faremos
Nada está no lugar?
Tudo está por pensar
Tudo está por criar...


Seremos capazes de recriar uma vida nova a partir da pulsão de morte? Seja como for, a proposta da exposição é de extrema envergadura, sua execução inventiva é um capricho só, e o efeito em mim foi tocante. Mais ainda, radical: toca na raiz a fragilidade do mundo em que vivemos.
Me deu uma vontade urgente de olhar a Gioconda nos olhos. Será que ela me aguarda no futuro? Saí a passos largos ao seu encontro, atravessando galerias impressionantemente vazias: nunca vi o Louvre assim. Naquele momento, só meu futuro, minúsculo que fosse, um futurinho particular, me importava.
Entrei na sala. Um olhar de relance no monumental Veronese e suas Bodas de Caná que logo passaram às minhas costas, e um suspiro: o futuro estava ali no seu lugar. bem à minha frente, com olhos devoradores de mistério: vieste me encontrar, homem? Pois veja-te bem na moldura que espelha tua própria humanidade: o futuro a ninguém pertence. Eis-me a ti, retrato anônimo, esboço de futuro sem cabeça e assinatura.


Claudio Pfeil

27 de novembro de 2015

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Saudade do-nada



Passage Verdeau, Paris

Comovente o minuto de silêncio, hoje, ao meio-dia, em toda a França. Saudosista não sou, nunca fui. Mas, confesso, naquele minuto exato de silêncio no meio da multidão, bateu uma saudade danada, assim, do nada.
Saudade milenar, ancestral, daquelas que ficam coladas nos álbuns de figurinhas, nos livros de quando era criança. Saudade colorida, aventurosa, cheia de perigos que existiam, não para desgraçar a vida, mas porque sem eles a vida seria totalmente sem graça.
Saudade de Monteiro Lobato, Andersen, Exupéry, do Meu Pé de Laranja Lima, do quintal de Resende, de As Mil e uma Noites. Saudade do tempo em que sultão, marajá, Ali Babá, Aladim me faziam amar todas as terras e homens do planeta e me sentir amado e acolhido por todos eles. Saudade de lutar não para destruir cidades, devastar a natureza, massacrar pessoas, mas porque isso fazia a gente rolar no chão, se fingir de morto e morrer de rir disso. Saudade de não saber o que é religião ou raça pois a única coisa que importa na vida é a amizade. Saudade de dizer: agora chega, cansei dessa brincadeira, vamos lá em casa tomar um lanche?
Saudade de elefante, camelo, deserto. Saudade de ficar mudo diante de Gizé: como um grão de areia pode construir algo tão gigante? Saudade do mergulho no Nilo, de pular de alegria - estou dentro do Nilo! estou dentro do Nilo! estou dentro do Nilo! – as palavras rindo-se umas com as outras diluindo-se nas águas, para finalmente calarem-se ante o espanto da absoluta fragilidade de existir que faz o maravilhamento da vida.  Saudade do tempo que reverencia o tempo, do homem que reconhece o homem em respeito humilde ao que sempre se esvai, do amor que desconhece estrangeirices, pula cercas, faz da terra mais distante um coração. Saudade do tempo em que Isis era tão somente a deusa da maternidade e da fertilidade, símbolo do renascimento e da harmonia cósmica.
Saudade da vida que tem valor não porque dementes e perversos resolvem a qualquer momento acabar com a história singular de cada um. Saudade da vida que se lambe os beiços de beijos, recobre os corpos de carinho, não de estilhaços. Saudade dos recomeços, de virar a página, dar fim a certas coisas. Saudade de achar que somos figurinhas do mesmo álbum, da mesma história, do mesmo quintal, do mesmo rio que se esvai: cada um é uma saudade que se cola em algum lugar, uma vida que só tem graça em se descolar ou morrer, quando é de brincadeira. De resto, puro fluir e esvair natural das coisas. Por quê? Saudade de achar que há um porquê para tudo e que se a gente não entendeu agora, vai entender depois.
Um minuto de silêncio no meio da multidão, um silêncio feito de não-porquês, do incontrolável da vida, do que justamente é fora de sentido. Diante de um crime abominável, a gente tenta uma explicação: por quê? Como é possível alguém agir assim? Matar por matar primeiro, se explodir depois. Não tem explicação. O silêncio demanda justamente o que em si é inomimável, irrespondível, um nada de sentido. Bateu a saudade. Minha saudade é puro descabimento, saudade danada, assim, surgida do-nada. 
Enquanto o silêncio demanda o impossível, a saudade presentifica o nada.

Claudio Pfeil