2 de outubro de 2016

0

O escândalo de todos nós

Marcos Caruso em “O escândalo Philippe Dussaert”

O que faz de um artista, artista? O que faz da criação, arte? O que faz de um objeto, obra de arte? 
 
Esse é o motor, por assim dizer, de “O escândalo Philippe Dussaert”, no palco da Maison de France, no Rio de Janeiro. Por si só, já valeria a ida ao teatro. Pois essas indagações constituem todo um campo de pesquisa filosófico - a que se dá o nome de Estética -, no qual, filósofos, críticos ou amadores de arte, buscam conceituar o que justamente transcende, em parte ou totalmente, a qualquer conceito. Como diz Kant, o belo, é o que agrada universalmente sem conceito”. Sem conceito. Um escândalo à razão.

Escândalo, do latim scandalum, a etimologia diz bem: é o que faz a gente tropeçar, cair. Principalmente a partir do dia em que Marcel Duchamp transformou um urinol em obra de arte: “A fonte”, 1917. De lá para cá, a arte se desnormatizou, explodiu regras, savoir-faire, temas, suportes: a cada dia surgem novas formas de expressão, expressão do nosso tempo, e por isso chamada “arte contemporânea”. Toda expressão do tempo é arte? Mas o que é Arte? Perturba, incomoda, embaraça. O que não impede nem exaure o escândalo que a arte É e CAUSA, ao contrário: o reativa como uma lufada de ar-te vivificante. Porquanto, ainda que incapazes de conceituá-la, não deixamos de indagar até hoje o urinol-fonte: isso é Arte? 
 
Dessa forma, tropeçamos em “O escândalo Philippe Dussaert”, texto de Jacques Mougenot, que na interpretação de Marcos Caruso, sustenta densidade e humor, numa dosagem e timing perfeitos. Comecemos com o seguinte: alguém que faz cópias perfeitas de Da Vinci, Manet, Cézanne, Vermeer, Boucher, Delacroix,Van Eyck, é artista? Um falsário? E se, todavia, esse alguém, ao copiar os mestres, apagasse quaisquer personagens - homens, mulheres, animais – e retratasse fielmente o que resta na obra sem eles? Imaginemos La Gioconda, sem a Gioconda: pois então, foi o que fez Philippe Dussaert. Volonté d'effacement – vontade de apagar palavras de Madame D'Argenson, renomada galerista e crítica de arte, que o promoveu e defendeu com o mesmo ardor com que se tornou amiga e mecena daquele que considerava um “Hamlet doente e depressivo”.
 
Falsário, em definitivo, não se trata de um, pois o effacement desmente toda intenção de autenticidade; mais ainda: dá a ver algo a mais que o mestre não deu – o fundo do motivo principal. Ou seja, ao apagar o que em geral dá nome à obra, Dussaert dá a ver uma dimensão outra do mesmo. Copista criador? Seja como for, de effacement em effacement, o “copista” radicaliza o gesto, suprimindo tudo o que há de concreto em sua obra. Resta algo? O vazio. Eis o nihilismo exposto numa galeria onde não há outra coisa senão o vazio, este elevado à obra de arte, o criador à fortuna e fama. Ex nihilo. Que escândalo! 
 
Será verdade? Impostura? Arte de vanguarda? Quais os critérios, limites, da arte contemporânea? Quem haverá de decidir? Críticos de arte, colecionadores, museus famosos, marchands, cotação no mercado, ministério da Cultura? Só assistindo a “O escândalo Philippe Dussaert”, não para saber, mas indagar. Indagar a experiência artística, suas escabrosidades e conceitualizações, e encarar a fala desafiante do autor, mas também do ator, ambos a filosofar divertindo e a divertir filosofando: “É com palavras que nada se torna uma coisa”, alfineta Caruso. O que está em cena é uma reflexão sobre o estatuto estético-ontológico da arte contemporânea.
 
Mas o escândalo não para aí. Aliás, não para em lugar nenhum: o próprio do filosofar é não parar. Por isso falei de motor: o escândalo nos propulsa. Para onde? Se é verdade que a filosofia nos leva à arte, filosofia e arte nos propulsam para a psicanálise. De effacement em effacement, “O escândalo Philippe Dussaert” nos levam a refletir sobre o escândalo de cada um de nós: nosso effacement, nossa alienação como sujeito. Bem poderia chamar-se “O escândalo Jacques Lacan”. Por quê?

Porque para Lacan, o sujeito não é somente o ser enquanto ele fala, mas sim enquanto ele é fabricado pela palavra. Volto à fala de Jacques Mougenot: “É com palavras que nada se torna uma coisa”. Mutatis mutandis, é exatamente isso que o neologismo lacaniano parlêtre expressa. Antes de sermos capazes de falar, já falam de nós, somos falados pelo Outro. Ou seja, muito antes de existirmos no sentido biológico, somos no discurso dos outros. Parodiando: é com palavras que somos no Outro. Outro, com “O” maiúsculo - a linguagem é a forma do outro por excelência. O que significa dizer que o sujeito depende do Outro para ser, ou, se preferir, que o ser do sujeito é uma função da palavra, do discurso. Portanto, mais do que sujeitos de ação, somos sujeitos agidos, co-agidos pelo discurso que vem do Outro. 
 
Daí nossa alienação. Alienação vem do latim alienus, que significa outro. Nós nos alienamos na medida em que somos subjugados pelo discurso do outro, fabricados por ele. Passamos nossa vida a falar e a pensar nas palavras que vêm de fora. Nesse sentido, somos estrangeiros a nós mesmos. Esse é o nosso escândalo, escândalo de cada um: é o que faz a gente tropeçar, cair. Somos a tela do mestre com o personagem apagado, effacé. Pois, na medida em que somos tomados pelo discurso do Outro, algo vivo de nós não consegue ser capturado, simbolizado, conceitualizado, há uma perda, uma queda, um effacement. Isso ocorre no plano individual, na absoluta singularidade de cada um. 
 
Porém, se abrangermos nosso olhar, do plano subjetivo ao intersubjetivo, do individual ao social, esse effacement é ainda mais visível. Isso mesmo: visível. Na contemporaneidade, tudo, absolutamente tudo, tem que passar pelo crivo da imagem, ser desvelado, desnudado. É o ideal de um sujeito desprovido de interioridade, sem mistério, sem segredo, um sujeito de quem os mais diferentes discursos aspiram a dar conta. Todo mundo – leia-se: o Outro sob múltiplas máscaras contemporâneas – detém a verdade sobre nós, sabe o que somos e do que necessitamos. Somos enredados no discurso dos políticos, economistas, religiosos, publicitários, cientistas, industriais, médicos, farmacêuticos, psiquiatras, sexólogos, dos meios de comunicação, internet. Somos parasitados por eles.

De que maneira? Pelo consumo e a obrigação de completude. Nenhuma falta, nenhuma tristeza, nenhuma ferida são admitidas. Tudo em nós deve ser sanado com o consumo: a gente tem que consumir para ser feliz. Todos esses discursos contemporâneos acabam por provocar um effacement dos personagens que somos, tornando cada um deles, como dizia Madame D'Argenson, um “Hamlet doente e depressivo”. 
 
A pergunta que a peça enseja, a formulo nesses termos: será que não adoecemos ou deprimimos justamente por nunca atingir a completude que os discursos-parasitas insistem em nos vender? Não seria essa injunção por demais visível – consumir e gozar sem limites - invadindo todos os espaços de nossa tela de vida, o que constitui nosso escândalo, faz a gente tropeçar, cair? Pois, se nenhuma conceitualização é capaz de definir a Arte, nenhum discurso é capaz de expressar a verdade do sujeito. O que somos no Outro, é uma espécie de mentira de nós mesmos. 
 
Os discursos que nos parasitam funcionam, na tela social, como uma volonté d'effacement. Mais grave do que o escândalo de alienarmo-nos a eles, é permanecermos enredados nessa mentira por toda vida afora. A mentira é inadmissível, diz Caruso: o único lugar onde a mentira é justificada, é o teatro. Portanto, o escândalo que nos faz tropeçar, é o mesmo que nos convida a levantar e a prosseguir a caminhada, de forma mais avisada, menos alienante.
 
E aproveito a hora para levantar, e bater palma de pé, para Marcos Caruso - em atuação solo magistral! -, Fernando Philbert - direção impecável – Natalia Lana, cuja cenografia minimalista e funcional, é surpreendente.
O escândalo Philippe Dussaert”: escândalo de todos nós.

MAISON DE FRANCE, Rio de Janeiro, de quinta a domingo, até 18 de dezembro