Maracanã, Rio de Janeiro, Copa do Mundo 2014 |
A Argentina chegou à final da Copa do Mundo contra a
Alemanha: ficou em vice. Assisti à sua estreia contra a Bósnia no Maracanã, mas
o tão esperado duelo não
ocorreu. Pelo menos no gramado.
O verdadeiro duelo se deu na tribuna, entre torcidas: a da Argentina, é claro - que literalmente lotou e coloriu o Maracanã de branco e azul - e a do Brasil, infinitamente menor do que a arquirrival, mas suficiente para fazer peso e torcer pela Bósnia. Mas o que o Brasil tem a ver com a Bósnia? Nada, exceto o fato de ser contra à Argentina: torcer pela Bósnia e "secar" a Argentina, um só e mesmo combate. Está certo que foi mais fácil secar a Argentina do que torcer pelo time da Bósnia:
- Porra, a gente tá tentando torcer pela Bósnia cacete, mas esse time de merda não ajuda! Puta que pariu! - esgoelava-se uma torcedora desbocada ao meu lado.
O clima, o ânimo e o estilo da tribuna eram esse.
Os hermanos cantavam lá, os brasileiros
cantavam cá.
Os brasileiros
provocavam cá, os hermanos provocavam lá. Os hermanos xingavam lá, os brasileiros
xingavam cá. "Argentina!Argentina!" lá, "Bósnia! Bósnia!"
cá.
"Messi" em coro lá, "Neymar" em
coro cá.
Não sei o quê lá, "Pentacampeão" cá!
Teve até um arremedo de pancadaria, lá e cá, cá e lá.
E esse toma lá dá cá recomeçava - ora lá e cá, ora cá
e lá - numa repetição sem fim, como estorinha que criança pede para contar
antes de dormir: sempre a mesma.
Incrível como as torcidas de futebol, no seu gigantismo ostentamente viril, podem ser ao mesmo tempo tão puerilmente primitivas. Sabe aquela coisa de meu pai bate no seu, o meu é maior, melhor, mais forte do que o seu"? Pois é.
A ida ao Maracanã ontem - para além da emoção de adentrar o templo lendário do futebol numa Copa do Mundo - fez-me sentir no corpo o que eu já pressentia há muito tempo: a rivalidade entre torcidas no futebol, traduzida na expressão “paixão de torcedor”, e a qual frequentemente veste o uniforme da violência e do fanatismo (uni-forme, uma forma única), é de fato uma paixão. O que me chamou a atenção ontem, foi o seguinte: a paixão do torcedor rola propriamente muito mais fora do que dentro do campo, ou para bem dizer, rola noutro campo.
Paixão, no sentido forte, etimológico - pathos - é aquilo do qual padecemos, que nos faz sofrer, retorcer de dor, torcer-de-dor, torce-dor. E o que faz de cada um, torce-dor? A própria ausência de sentido, a inabilidade ou incapacidade de todos nós, seres falantes, de lidar com o impossível de dizer. O torce-dor vai se agarrando às palavras numa tentativa desesperada de nelas encontrar socorro, de fazê-las significar o insignificável. Mas para isso, o torce-dor precisa de um outro torce-dor a quem se dirigir e que lhe sirva de testemunho desse “salve-se quem puder”: o torce-dor rival é um espelho. Cá e lá, lá e cá, o torce-dor canta, xinga, provoca, gesticula, ameaça, esbraveja, até bate de raiva, num toma lá dá cá vicioso, sem sentido nenhum. Que sentido tem um de cá levantar o indicador num gesto obsceno a um outro de lá, que se encontra a léguas de distância e sequer conhece, e vociferar: vai tomar no seu...?
Pois é, sem sentido nenhum, sem sentido mesmo, posto que é a própria ausência de sentido que se torce e retorce no torce-dor: é o insignificável de cada um. O insignificável toma corpo no torce-dor e o corpo do torce-dor não sabe o que fazer com esse resto de indizível: é da ordem da desobediência, do sem lei. E, claro, com um modo de satisfação singular, singularíssima, de cada um.
Futebol é assim: dentro do gramado, a lei; fora dele, o corpo feroz e sem lei do torce-dor, marcado pelo insignificável e uma excitação desenfreada, gozante, em se haver com isso. Enquanto o árbitro opera em campo, impõe as regras do jogo, adverte, marca a falta, expulsa - ou seja, encontra palavras para dizer, significar - o torce-dor sofre, padece de um silêncio, um vazio, uma fenda, contra os quais nada pode. O torce-dor sofre de não saber dizer; antes, de não poder dizer. Tudo é em vão. Nessa impotência que é sua, solitária, irrompe a agressividade, transmutada pelo torce-dor em hostilidade frente ao torce-dor rival, este que nada mais é do que sua imagem no espelho, ele mesmo, isto é, o sem-sentido-em-corpo do torce-dor ante seu próprio insignificável. Daí, quando o corpo feroz e sem lei do torce-dor se aglutina numa massa gigante de torce-dores, o risco de se resvalar para a loucura é sempre iminente. Nietzsche está aí para nos alertar: “Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra."
Todo torce-dor é desde sempre um sofre-dor, terrível sofre-dor. E para sempre: palavra nenhuma, nem o mais eloquente palavrão, é capaz de dizer e calar essa dor.
Sensacional... gostei muito da sua escrita e da construção desse pensamento... compartilho dessa idéia das torcidas e sua crônica ajudou a ver mais a fundo o próprio movimento de massa formado por torce-dor(es)!!!!
ResponderExcluirSimplesmente nada falta em seu texto.
ResponderExcluirMe sinto completamente enquadrada nesta enigmática tarefa...
Impossível de não me permitir a este adoecimento, o me tornar:
Tor- Ser- dora, por adoráveis 90 minutos de alegria e sofrimento, isso é vida